Por Vladimir Aras
A prova testemunhal tem sido objeto de estudos bastante intrigantes sobre a psicologia do testemunho e aspectos relacionados à sua credibilidade em geral. Crimes sexuais sempre revelam o aspecto sensível das declarações das vítimas desses delitos e do procedimento de sua produção. A regulamentação do chamado “depoimento sem dano” no Brasil é um bom exemplo do caminho percorrido pela Justiça Criminal para lidar com uma parte desse problema.
Em uma recente decisão, divulgada em 22 de junho de 2021, num caso de abuso sexual contra uma criança, a Corte Europeia de Direitos Humanos considerou que a Estônia violou a Convenção Europeia na ação penal proposta contra o pai da menina, o suposto abusador.
Afirmou o TEDH ter havido violação ao art. 3º da Convenção (quanto ao seu aspecto processual) e ao art. 8º do mesmo tratado, no que tange ao direito da vítima do crime a uma resposta eficaz da Justiça criminal do seu país.
Tais artigos da Convenção Europeia preveem obrigações positivas para os Estados Partes, dos quais surge um dever de investigação efetiva quanto a situações de descumprimento do tratado do Conselho da Europa sobre direitos fundamentais.
Segundo o TEDH, houve falha das autoridades estonianas em informar a criança de 4 anos de seu dever de dizer a verdade e de seu direito de não testemunhar contra seu pai. Isso levou à exclusão de seu testemunho e à absolvição do pai, reconhecida em grau recursal.
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Tais falhas significativas na resposta processual penal do Estado quanto às alegações da requerente, minaram o direito ao devido processo em um caso de abuso sexual infantil.
Para a Corte de Estrasburgo, a aplicação estrita de regras processuais sem distinção entre crianças e adultos não é compatível com o padrão internacional de respeito aos direitos humanos, que exigem medidas protetivas para a tomada de depoimentos de crianças na fase de investigação e durante o julgamento. A vulnerabilidade e as necessidades específicas de uma criança na condição de depoente num processo penal devem ser levadas em conta pelas autoridades de persecução e julgamento.
A convenção de Lanzarote (2007) sobre violência sexual contra crianças foi mencionada em vários trechos da sentença europeia, mas não foi aplicada no caso, porque entrou em vigor para a Estônia após os fatos apurados na ação penal frustrada. Em sua fundamentação, o TEDH também mencionou diretivas europeias e a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989.
Destaco os parágrafos 83 e 84 da sentença europeia, disponível em inglês e francês:
83. Não há dúvida, no presente caso, de que o alegado abuso sexual de que foi vítima a requerente se enquadra nos artigos 3 e 8 da Convenção, desencadeando a obrigação positiva do Estado de adotar dispositivos penais que punam efetivamente o abuso sexual de crianças e a de aplicá-los na prática por meio de investigação e ação penal eficazes.”
84. Em vista do acima exposto, os Estados são obrigados, de acordo com os Artigos 3 e 8, a aprovar disposições que criminalizam o abuso sexual de crianças e a aplicá-las na prática por meio de investigação e ação penal eficazes, levando em consideração a vulnerabilidade particular das crianças, sua dignidade e seus direitos como crianças e como vítimas (ver Z v. Bulgária, § 70, e A e B v. Croácia, § 112, ambos citados acima). Essas obrigações também decorrem de outros instrumentos internacionais, como, entre outros, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e a Convenção de Lanzarote (ver parágrafos 49-50 acima). Ao interpretar as obrigações do Estado acima mencionadas, o Tribunal deve levar em consideração as regras e princípios relevantes do direito internacional, bem como os instrumentos não vinculantes expedidos pelos órgãos do Conselho da Europa (ver Demir e Baykara v. Turquia [GC], no. 34503/97, §§ 69 e 74, ECHR 2008, e X e outros c. Bulgária, citado acima, §§ 179 e 192).