por Vladimir Aras
A permissão está em dois projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional. – “Qual a novidade?“, perguntaria um cético ou um cínico. Alguns maus policiais já cometem crimes pelo País e não precisam de lei tampouco pedem autorização de quem quer que seja. Mas isto é diferente. Trata-se dos projetos de lei do Senado 150/2006 e 100/2010 que regulamentam a infiltração policial no Brasil.
O PLS 150/2006 é uma das propostas legislativas mais aguardadas pelos órgãos de persecução criminal. Fruto de sugestão da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla), a proposição revoga a Lei do Crime Organizado (Lei 9.034/95), conceitua organização criminosa, tipifica o crime de associação em organização criminosa e disciplina a colaboração criminal premiada (delação), a escuta ambiental, a ação controlada e a infiltração policial. O projeto foi aprovado no Senado no final de 2009 e está sob revisão da Câmara dos Deputados.
Já o PLS 100/2010, aprovado no Senado em maio/2011 a partir de proposta da CPI da Pedofilia, regula a infiltração policial para investigações eletrônicas contra criminosos sexuais que atacam crianças e adolescentes pela Internet.
Será possível a infiltração por agentes de polícia ou de inteligência em tarefas de investigação, a ser realizada pelos órgãos especializados pertinentes, dependendo de autorização judicial circunstanciada, motivada e sigilosa. Curiosamente, também existe a infiltração no sentido oposto, de criminosos no seio do Estado. No filme Os Infiltrados (The Departed, 2006), estrelado por Leonardo di Caprio e Matt Damon, este tema é muito bem exposto pelo diretor Martin Scorsese. Em Senhores do Crime (Eastern Promises, 2007), com Viggo Mortensen e Naomi Watts, a infiltração também é o centro da trama.
Conceito de infiltração de agentes
A infiltração “policial” é uma das chamadas técnicas especiais de investigação (TEI), empregada por órgãos de persecução criminal, agências de inteligência e serviços secretos em todo o mundo. É meio de obtenção ou coleta da prova, que se baseia na dissimulação e no sigilo. Na infiltração, policiais e agentes de inteligência imiscuem-se em quadrilhas ou organizações criminosas e também em células terroristas, tornando-se membros sob disfarce.
Para esta atividade, os infiltrados (chamados de undercover agents em língua inglesa) assumem falsas identidades, baseadas em histórias-cobertura solidamente construídas e bem memorizadas e passam a agir como se fossem integrantes do grupo criminoso. Para encenar este papel, além de corajoso, o infiltrado deve ser um homem (ou mulher) sensato, bem preparado e emocionalmente equilibrado e que também domine os hábitos e jargões do grupo no qual pretende infiltrar-se.
Cenário histórico no plano normativo brasileiro
A infiltração policial foi introduzida no Brasil em 2001, pela Lei 10.217/2001, que alterou a Lei do Crime Organizado (Lei 9.034/95). Mais de 10 anos depois são escassos os casos de utilização da infiltração em investigações relevantes. Sobre ela pairam severas dúvidas, que vão da constitucionalidade à moralidade. Infelizmente, o art. 2º, inciso V da Lei 9.034/95 em vigor, limita-se a descrever o instituto, não tratando da matéria operacional e da forma de sua utilização em processos criminais, nem das graves consequências que podem advir do mau emprego da técnica.
O cenário legislativo não mudou com a introdução da infiltração policial no art. 53, inciso I, da Lei 11.343/2006 (Lei Antidrogas), que também se contenta em prever o instituto.
Embora atualmente não haja detalhamento legislativo sobre as atividades dos investigadores introduzidos em esquemas criminosos como insiders, tem-se como consenso que os policiais e agentes infiltrados não estão autorizados a cometer certos crimes graves, entre eles os delitos de homicídio e estupro. Quanto aos demais, sua conduta será considerada estrito cumprimento do dever legal de investigar e obter provas, o que exclui a ilicitude (art. 23, III, do Código Penal). Portanto, não haverá crime.
Infiltração em investigações de pedofilia
Como resultado da CPI da Pedofilia, o Senado aprovou um projeto que permite a policiais infiltrar-se em salas de chat (bate-papo) e em redes sociais na Internet, a fim de descobrir esquemas de ciberpedofilia, identificar e prender esses predadores sexuais, inclusive aqueles que se dedicam ao grooming, isto é, os que desde cedo “afagam”, “acariciam” e “criam” suas pequenas “presas” por meio de lições e conselhos ilusórios, exagerada atenção de cunho sexual, entrega de dádivas e presentes e falsas manifestações de carinho e preocupação.
O grooming é o principal modus operandi dos ciberpedófilos. Envolve a manipulação psicológica da criança ou adolescente vítima, para que esta passe a confiar no pedófilo, com quem estabelecerá vínculos emocionais, que, ao fim, eliminarão as inibições da vítima, abrindo as portas para atividade sexual presencial ou telepresencial, neste caso por meio de webcams. Alguns criminosos gravam as sessões em vídeo para gratificação pessoal ou para troca ou comercialização em “clubes” virtuais.
A ciberinfiltração é objeto do PLS 100/2010, que altera a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Tal modalidade de infiltração, realizada à distância, por meio da própria Internet, poderá ser feita a pedido da Polícia ou do Ministério Público, para investigações por prazo de até 90 dias, mas sem exceder o máximo de 720 dias, em caso de efetiva necessidade, a critério do juiz.
Neste tipo de teleinvestigação, o agente policial faz-se passar por uma criança, por um adolescente ou por um pedófilo, e participa das salas virtuais e das redes sociais ou visita sites de ciberpedofilia como se fosse uma potencial vítima ou um consumidor de imagens de pedopornografia. Toda a operação corre em sigilo, com acesso aos autos apenas pelo Ministério Público, pela autoridade policial e pelo juiz competente. Somente após a conclusão da investigação, concede-se vista à defesa.
A nova lei permitirá a infiltração de agentes de polícia na internet com o fim de investigar os crimes de produção, reprodução, registro, guarda, armazenamento, aquisição, posse, distribuição, exposição, divulgação, troca, disponibilização, venda ou comercialização de material pedopornográfico (“pornografia infantil”), inclusive fotografias, vídeos e outros registros gráficos exibidos, postados, disponibilizados ou transmitidos pela internet, assim como a conduta de aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso.
Além dos crimes da Lei 8.069/90, a infiltração informática poderá ser empregada para investigar delitos sexuais tipificados no Código Penal, que tenham crianças ou adolescentes como vítimas, a saber, os crimes sexuais contra vulnerável: o estupro de vulnerável (art. 217-A, CP), a corrupção de menores (art. 218, CP), a satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente (art. 218-A) e o favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável (art. 218-B, CP).
O projeto brasileiro se baseia no programa Innocent Images, do Federal Bureu of Investigation (FBI), que, desde 1995, mantém uma unidade de agentes que se infiltram na internet para investigar pedófilos que atuam no ciberespaço.
Conclusão
Em todos os seus aspectos, o tema da infiltração policial é complexo e controvertido. Envolve problemas de direito penal e de ética e questões de responsabilidade civil. Mais ainda. Quais são os limites da infiltração? Que tipo de delitos o agente está “autorizado” a cometer? Se o agente praticar um crime para além da “autorização” que lhe foi concedida, poderá responder criminalmente pelo excesso? Se o agente infiltrado “mudar de lado”, quais são os efeitos sobre a prova colhida?
Só uma coisa é certa. A infiltração policial só deve ser autorizada para crimes graves, entre eles os delitos sexuais cometidos contra crianças e adolescentes. Enfim, se aprovados esses novos regramentos, no Brasil os agentes policiais e de inteligência poderão praticar crimes em nome da lei. Talvez este seja um sinal do tempo em que vivemos.