Por Vladimir Aras
Com a entrada em vigor da Convenção de Palermo na jurisdição brasileira (Decreto 5.015/2004), passamos a ter um conceito legal de organização criminosa, já que o tratado em questão integrou-se à ordem jurídica com força de lei definidora (mas não como lei tipificadora, entenda-se bem), já que neste tópico vigora o princípio da legalidade penal em sentido estrito.
Diz o art. 2º da Convenção da ONU que grupo criminoso organizado é o “grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves” ou enunciadas na Convenção, “com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material“. As infrações graves são os crimes cuja pena máxima é igual ou superior a 4 anos de prisão. Por sua vez, os delitos enunciados na Convenção de Palermo são a “participação em um grupo criminoso organizado” (art. 5º), a lavagem de dinheiro (art. 6º), a corrupção (art. 8º) e a obstrução da justiça (art. 23).
Enquanto os tribunais debatiam este tema, alguém se preocupou em tentar resolver o problema na via legislativa. Em 2012, entrou em vigor a Lei 12.694/2012. Este diploma criou os tribunais temporários de primeira instância para o julgamento de crimes praticados por organizações criminosas. Tais órgãos colegiados de primeiro grau, que se irmanam, na sua feição coletiva, às auditorias da Justiça Militar e ao tribunal do júri, não pegaram. Poucos foram constituídos no Brasil desde então, o que talvez agora se altere com a nova regulamentação trazida pela Lei Anticrime, constante do seu novo art. 1º-A. A reforma de 2019 lhes deu feição de varas permanentes, que podem ser criadas na Justiça Federal e na Justiça dos Estados.
Mas o que importa saber aqui é que, para sua formação, é preciso ter presente um crime praticado por organização criminosa, definida por essa lei como “a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.”
Como se vê, a Lei 12.694/2012 trouxe um conceito de organização criminosa, não um tipo penal. E esse conceito é em tudo compatível com a definição constante na Convenção de Palermo, que entrou em vigor no Brasil em 2004.
Em agosto de 2013, porém, a Lei 12.850/2013 introduziu uma nova definição de organização criminosa, distinta das que constam na Convenção de Palermo e na Lei 12.694/2012. Assim se expressou o legislador no art. 1º, §1º da nova Lei do Crime Organizado:
§1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
Evidentemente, há um problema estrutural no conceito da LCO, por sua evidente incompatibilidade com o texto de Palermo, tratado que o Brasil está obrigado a cumprir, inclusive no tocante aos mandados expressos de criminalização. Como se vê no seu artigo 5º, relativo à criminalização da participação em organização criminosa, a UNTOC não deixa dúvidas quanto à obrigação internacional dos Estados Partes: “Cada Estado parte adotará (…)”.
Para nós, há, substancialmente, duas incoerências na Lei 12.850/2013:
a) a Convenção de Palermo e a Lei 12.694/2012 exigem apenas 3 membros para a existência de uma organização criminosa, ao passo que a Lei 12.850/2013 exige 4 pessoas;
b) O texto de Palermo e a lei brasileira de 2012 consideram infração penal grave o crime cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 anos de prisão, enquanto a Lei 12.850/2013 trata como graves somente os crimes com pena máxima superior a 4 anos de reclusão.
Enfim, o que é organização criminosa no conceito “universal” da Convenção de Palermo e para os fins procedimentais (formação das turmas criminais de primeiro grau) da Lei 12.694/2012 nem sempre o será no âmbito da Lei 12.850/2013, devido ao que consta do §1º do art. 1º da Lei de 2013. Os conceitos não se compatibilizam. De um lado, Palermo e a Lei 12.694/2012. Do outro, a definição trazida pela Lei 12.850/2013.
A melhor alternativa para evitar esse conflito de normas teria sido o veto a tal dispositivo, uma vez que nenhum prejuízo haveria para a conformação e eficácia do tipo penal de associação em organização criminosa, que resultaria, em tal cenário, da combinação do art. 2º da Lei 12.850/2013 com o art. 2º da Lei 12.694/2012 ou com o art. 2º, letras ‘a’ e ‘b’, da Convenção de Palermo. Todavia, isto não ocorreu.
Assim, há evidente desencontro entre a Lei 12.850/2013 e a Lei 12.694/2012, especialmente no tocante ao conceito a ser utilizado para a definição da competência das varas colegiadas de primeiro grau (art. 1º e art. 1º-A, incisos I e III), o que gera incerteza jurídica, dúvidas quanto à legitimidade da formação do juízo coletivo (juiz natural) e potencial violação a obrigações assumidas pelo Estado brasileiro diante da comunidade internacional e das demais Partes da Convenção de Palermo.
Minha impressão é a de que, embora não o tenha dito, a Lei 12.850/2013 revogou tacitamente o art. 2º da Lei 12.694/2012 e temos apenas um conceito legal de organização criminosa. Afinal, segundo o art. 2º, §1º, da LNDB (antiga LICC), “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior“. Ademais, o inciso IV do art. 7º, da Lei Complementar 95/98, determina que “o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei“. Esta solução não é a melhor, porque situa o Brasil em posição de inadimplência em relação ao art. 5º da UNTOC, o que reclama revisão legislativa do conceito inscrito no art. 1º da Lei 12.850/2013, para sua completa adequação convencional. Afinal, pacta sunt servanda.
Então, a segunda tese, em homenagem ao princípio basilar das relações internacionais convencionais, seria o de preservar o conceito legal de organização criminosa, contido no art. 2º da UNTOC, e relacioná-lo ao tipo penal do art. 1º, §1º, da Lei 12.850/2013. Contudo, em se tratando de matéria penal, tal solução seria facilmente questionada, embora preserve o compromisso internacional do País em face dos demais Estados Partes da UNTOC. A variante desta tese levaria a complementarmos o tipo penal da Lei 12.850/2013, com o conceito legal do art. 2º da Lei 12.694/2012. Mas esta saída também sofreria uma objeção (embora singela), a de que a própria norma de 2012 limita o seu conceito “para os efeitos desta Lei”.
A terceira tese pode encaminhar-se para assinalar que a Lei 12.694/2012 continua em vigor, porém, apenas para definir a premissa básica para a convocação do tal painel (art. 1º) ou para a fixação da competência da vara de juízes de primeiro grau (art. 1º-A), que, por motivos de segurança, devam reunir-se em colegiado, com certo sigilo, para decidir causas relacionadas a organizações criminosas. Apoia essa interpretação o fato de a Lei 12.850/2013 não ter observado o art. 9º da Lei Complementar 95/98, segundo o qual “A cláusula de revogação deverá enumerar expressamente as leis ou disposições legais revogadas“. Não tendo feito isto expressamente, a Lei 12.850/2013 teria preservado a vigência do art. 2º da Lei 12.694/2012. Contudo, tampouco esta tese deixará de ser refutada, porquanto a existência de um conceito de organização criminosa para fins processuais diverso do conceito para fins penais, pode gerar situações incertas, quanto ao princípio do juiz natural.