Acorda Cidade
Agência Senado – Na semana em que o país ultrapassa o patamar de 100 mil mortos pela pandemia da covid-19, e passados aproximadamente cinco meses do primeiro registro oficial de morte, as estatísticas sobre a doença se mantêm como um quebra-cabeças para pesquisadores e o público em geral. Por trás das páginas repletas de gráficos que mostram a trajetória e a localização das infecções pelo novo coronavírus e os números de óbitos e pessoas curadas, jaz um vasto sítio de ocorrências desconhecidas, ou apenas parcialmente descritas pelos levantamentos oficiais nas esferas federal, estadual e municipal.
Quando a pandemia acabar, ou tiver arrefecido, os órgãos sanitários, as universidades e os pesquisadores independentes terão ainda de fazer uma cuidadosa escavação para determinar de fato o quanto a pandemia afetou a população brasileira em seus mais variados contornos: desde a situação social até a aspectos como a cor, o gênero e as doenças pré-existentes. O que se têm como muito provável, até em razão do aumento incomum de casos de Síndrome Respriratória Aguda Grave (SRAG) é que há muita subnotificação.
"Desse levantamento e análise dependerá a capacidade de resposta que teremos a um novo problema grave no futuro", adverte em entrevista exclusiva à Agência Senado a cientista política e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), Lorena Barberia. (ver íntegra ao final)
Ela acrescenta:
"É preciso ter claro que isso não vai se dar na internet. A gente precisa fazer entrevistas, olhar documentos e coletar dados que não estão circulando publicamente. E, por último, a gente precisa entender melhor o mapeamento de contatos da população e como a sociedade se inter-relaciona em diferentes faixas etárias e grupos sociais. Se tivermos um bom mapa de contatos, de como a sociedade se move, vamos estar melhor preparados para a próxima pandemia, que certamente virá.
A fragilidade das estatísticas brasileiras não vem de março para cá, de acordo com a própria pesquisadora da USP. Segundo Lorena, há dados sobre desemprego consolidados e aplicação e verbas públicas que demoram até três anos para serem divulgados, e que seguem sendo corrigidos por muito tempo. O que a pandemia fez foi levar a exigência da divulgação instantânea ao ponto do estresse máximo.
"Hoje a grande maioria dos órgãos públicos federais produtores de dados estatísticos e geográficos mantêm seus sistemas de informações, de modo geral, sem possibilidade ou obrigatoriedade de compartilhamento automático uns com os outros, com os órgãos das demais instâncias de governo (estados e municípios) e demais poderes", lamenta o Doutor em Ciências Sociais e Presidente da Associação dos Consultores e Advogados do Senado Federal (Alesfe), Marcus Peixoto.
Segundo ele, o "déficit estatístico" é também uma decorrência da falta de uma demanda legal por avaliações de impacto legislativo, como parte do planejamento das políticas públicas e de seus resultados:
-Qualquer alteração legislativa deve ser precedida de um diagnóstico da realidade que a justifique, e da definição de objetivos que se pretenda alcançar. Só com esse ciclo completo da política pública é possível se implementar algum tipo de prestação de contas e responsabilização para os gestores públicos, sejam eles os formuladores das políticas ou os seus executores.
Defensor de mais eficiência nos gastos, Peixoto é cético quanto ao clamor puro e simples por forte controle das verbas necessárias ao cumprimento das obrigações constitucionais. E diz sentir falta, tanto no Governo Federal quanto no Congresso, de maior preocupação com uma política de dados que se apresentem em quantidade, qualidade e tempestividade para garantir eficiência à ação do Estado.
Formulário
Um dos calcanhares de Aquiles dos bancos de dados no Brasil é a falta de padronização, deficiência que se torna especialmente danosa num momento em que é necessário agir de forma coordenada para combater e prevenir uma doença em nível nacional. Como controlar o contágio, aplicar testes, providenciar leitos de UTI e respiradores artificiais se não há informação compartilhada e pública sobre o que está ocorrendo de verdade em cada município e até em cada bairro?
A Lei de Acesso à Informação (LAI), 12.527 de 2011, até garante a oferta transparente de dados (ver infográfico), mas a organização do conteúdo em planilhas é fundamental para que uma realidade complexa seja visível e compreensível por muita gente ao mesmo tempo — principalmente quando a informação tem de ser produzida por profissionais de saúde trabalhando na ponta do atendimento e por gestores de todos os níveis em 5.570 municípios, 26 estados federados, o Distrito Federal e na sede do governo federal em Brasília.
Com base na Lei 13.979/2020, o Ministério da Saúde instituiu um minucioso formulário para levantamento de dados relacionados à covid-19, o “Instrutivo de preenchimento da ficha de notificação de caso de Síndrome Gripal suspeito de doença pelo Coronavírus 2019 – Covid-19”, que está publicado na internet.
"O formulário é de preenchimento obrigatório, mas nem todas as informações que constam no formulário são preenchidas pelas unidades de saúde ou pelos governos. Isso faz com que a gente tenha uma base com informações relevantes, mas constantemente incompletas", explica a professora de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Michelle Fernández. Assim como a pesquisadora da USP, ela integra, com dezenas de outros estudiosos, a Rede de Pesquisa Solidária sobre a pandemia.
"Uma das hipóteses para a lacuna de dados tem a ver com a sobrecarga dos profissionais de saúde. Como eles têm tido muito trabalho durante a pandemia, o preenchimento desses dados não se dá de forma correta, ou eles acabam preenchendo o mínimo para dar conta do volume de demanda. Por outro lado, há a forma como as plataformas são apresentadas pelos governos. Às vezes, elas não contemplam todas as variáveis que deveriam contemplar, e por isso a informação não é qualificada", observa Michelle.