Lavagem de Dinheiro

MPF + PF + RFB = 8,3 bilhões de reais

Essa dinheirama ainda não foi inteiramente apropriada pelo Tesouro Nacional e certamente não o será, em razão do sumiço ou não localização dos contribuintes ou da ocultação ou inexistência de patrimônio sujeito a execução fiscal, mas o resultado desses procedimentos fiscais prova que o combate ao crime também traz divisas para o País

por Vladimir Aras

A união faz a força. Um caso bem-sucedido de cooperação interinstitucional comprova o acerto do velho dito popular. Refiro-me ao chamado caso Banestado, um mega-escândalo financeiro que ocorreu entre 1996 e 2002 no Paraná e resultou na formação de uma força-tarefa e duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI), uma no Congresso Nacional e outra na Assembleia Legislativa daquele Estado.

A Força-Tarefa do Banestado, composta pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal, contou com o apoio de técnicos da Receita Federal e do Banco Central. Ficou conhecida como FT-CC5, em referência às contas de não-residentes criadas pela carta-circular n. 5, do Banco Central, que podem ser abertas em bancos brasileiros e foram usadas para a remessa clandestina de divisas ao exterior por meio de interpostas pessoas (os “laranjas”).

Costumo dizer que, graças a uma permissão especial concedida pelo Bacen em 1996, que facilitou vultosos depósitos em espécie em tais contas, Foz do Iguaçu transformou-se no maior laranjal do Brasil. Lá havia mais “laranjas” que em Itapólis/SP, a maior produtora nacional da fruta. Na alegoria, os doleiros plantavam os “laranjas” na Tríplice Fronteira, criavam uma cooperativa para explorá-los e depois sugavam-nos até o bagaço, em seguida descartado. O rico suco era sorvido no exterior, quase sempre em Miami e Nova Iorque, depois de devidamente “processado” em paraísos fiscais do Caribe ou da Europa.

As investigações começaram com o procurador Celso Três, que identificou o esquema CC-5, e prosseguiu com o procurador Jessé Ambrósio dos Santos Junior, o DPF José Castilho Neto e o perito Renato Barbosa, em Foz do Iguaçu. Posteriormente, ao longo de mais de três anos (2003 a 2006), o grupo de investigadores do MPF e da PF requereu aos juízes Sérgio Moro e Gueverson Farias, da 2ª Vara Especializada Criminal de Curitiba, e obteve a quebra de sigilo bancário de inúmeros investigados por crimes contra o Sistema Financeiro Nacional no Brasil (especialmente evasão de divisas) e no exterior (em regra, manutenção de contas não declaradas). Em alguns casos, também foi possível imputar aos réus o crime de lavagem de dinheiro.

De fundamental importância para a obtenção dos dados bancários foi a cooperação internacional realizada com o United States Immigration and Customs Enforcement (ICE/DHS) e a Promotoria de Manhattan (New York County District Attorney’s Office), esta então conduzida (em mandatos consecutivos de 1975 a 2009) pelo lendário promotor-chefe Robert Morgenthau.

Entre as instituições vasculhadas estavam o Banestado/NY, a Beacon Hill Service Corporation, o Merchants Bank of New York, o MTB, a Lespan, e o Israel Discount Bank. Foi o maior e mais amplo rastreamento internacional de ativos já realizado no Brasil. A partir do compartilhamento das bases de dados de clientes desses bancos americanos, cujos depositários eram investigados no inquérito-mãe do caso Banestado, a Receita Federal chegou à cifra de R$ 8.375.929.819,11 em créditos tributários constituídos.

Os dados são de 31/12/2010, com base em 1.938 procedimentos fiscais instaurados por auditores da RFB em todo o País.

São R$8,3 bilhões em créditos exequíveis pela Procuradoria da Fazenda Nacional (PFN) depois de 8 anos de trabalho da RFB, do MPF e da PF, esforço do qual também participaram membros do MP/PR e do MP/SP. Nesta conta não entram os bloqueios realizados em contas bancárias no Brasil e no exterior, nem as ordens de sequestro e arresto de ativos pertencentes aos réus das inúmeras ações penais propostas majoritariamente em Curitiba, algumas das quais já julgadas.

Na força-tarefa que atuou de 2003 a 2006, funcionaram, entre outros, o PRR3 Carlos Fernando dos Santos Lima, o PRR4 Januário Paludo, os PR Robson Martins, Rodrigo Poerson, Márcio Barra Lima e eu, os DPF Paulo Roberto Falcão, Erika Marena e Luciano Flores de Lima, e o AFRF Roberto Leonel. Desse esforço conjunto, decorreram operações como a Farol da Colina, a Zero Absoluto, a Naufrágio, e outras tantas direta ou indiretamente relacionadas ao caso Banestado.

Essa dinheirama ainda não foi inteiramente apropriada pelo Tesouro Nacional e certamente não o será, em razão do sumiço ou não localização dos contribuintes ou da ocultação ou inexistência de patrimônio sujeito a execução fiscal, mas o resultado desses procedimentos fiscais prova que o combate ao crime também traz divisas para o País.

É de se admirar, portanto, que tramite no Congresso Nacional um projeto de lei (PL 354/09) destinado a anistiar pessoas físicas e jurídicas que se tenham valido do esquema CC-5 e de outras tipologias de lavagem como a hawala modificada (o nosso dólar-cabo) para enviar divisas ao exterior e ocultá-las em paraísos fiscais. A pretexto de internalizar recursos para investimentos em infraestrutura, a anistia poderá beneficiar todos aqueles que promoverem a repatriação voluntária de valores mantidos clandestinamente no exterior. A ideia surgiu inicialmente com o deputado José Mentor, então relator da CPI do Banestado. Agora o projeto reciclado foi apresentado pelo senador Delcídio Amaral e ganhou o bizarro nome de “Lei da Cidadania Fiscal“. As aliquotas a serem cobradas dos contribuintes fugidios serão de amigáveis 5% a 10%, muito menos do que pagam os contribuintes honestos deste País (até 27,5%), o que evidentemente viola os princípios da isonomia e da moralidade.

O lobby em prol do projeto é forte. Veja aqui. De quebra, os autores dos crimes do art. 22 da Lei 7.492/86 e dos delitos de falsidade documental, de descaminho e sonegação fiscal e previdenciária ganharão a impunidade, pois estará extinta a punibilidade desses delitos de colarinho branco. Entenda bem: todos os suspeitos ainda não identificados e todos réus, condenados ou não, serão beneficiados pela lei, e todo o monumental esforço do Estado brasileiro para a persecução de tais crimes terá sido em vão. Os nomes dos beneficiados por esta farra você pode imaginar…

Em suma, será como criar uma nova tipologia: a lavagem de dinheiro legislativa, a autorizada por lei do Congresso, via Diário Oficial. Algo que nem em Uganda se viu.

Verdadeira cidadania fiscal haveria se o Legislativo permitisse, por exemplo, a dedução integral de gastos dos contribuintes com edução própria e dos dependentes, seja no ensino regular ou em cursos complementares. O PL 354/09 não é senão um duto para o retorno ao Brasil de dinheiro cuja origem dificilmente poderá ser rastreada ou devidamente determinada. Tais quantias são confiscáveis, mas não legalizáveis.

Os valores remetidos ao exterior, somente nos esquemas do Banestado (CC-5, dólar-cabo, carros fortes e courriers) são superiores a US$24 bilhões de dólares. Este montante não é um chute; resulta de perícias contábeis realizadas por peritos criminais (entre eles Clênio Belluco e Eurico Montenegro) do Instituto Nacional de Criminalística – INC em documentos apreendidos pela Polícia e em dados bancários obtidos pela força-tarefa do Banestado. A astronômica soma, que seguramente supera a cifra acima apurada, é composta por dinheiro de caixa-2, por recursos desviados da Administração Pública, por produto ou proveito de corrupção, narcotráfico, contrabando, tráfico de armas, órgãos, pessoas e animais silvestres, e até mesmo por dinheiro “limpo”.

Em Roma foi cunhada a expressão pecunia non olet (“o dinheiro não fede”). No caso da evasão de divisas e da lavagem de ativos, dificilmente haverá como separar o joio do trigo. Esse dinheiro tem mau-cheiro e não há desodorizante que dê jeito. A pergunta é: o Congresso Nacional vai dizer que o crime compensa?

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