Por Vladimir Aras
Em 25 de junho de 2019, o Ministério da Defesa divulgou por meio de nota que um militar da Aeronáutica fora preso por supostamente transportar 39 quilos de cocaína em um avião da FAB. O fato teria sido descoberto na cidade de Sevilha, na Espanha, durante escala técnica.
Tendo em conta o preço médio do grama de cocaína no mercado europeu em 2016, a carga apreendida com o sargento suspeito valeria 2,6 milhões de euros, a depender de seu grau de pureza. Inicialmente, é preciso verificar se há jurisdição brasileira sobre o crime cometido por um militar brasileiro, em avião militar brasileiro, em missão no exterior.
A jurisdição do Brasil resulta da aplicação do art. 7º, §1º do Código Penal Militar:
Territorialidade, Extraterritorialidade
Art. 7º Aplica-se a lei penal militar, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido, no todo ou em parte no território nacional, ou fora dêle, ainda que, neste caso, o agente esteja sendo processado ou tenha sido julgado pela justiça estrangeira.
Território nacional por extensão
§1° Para os efeitos da lei penal militar consideram-se como extensão do território nacional as aeronaves e os navios brasileiros, onde quer que se encontrem, sob comando militar ou militarmente utilizados ou ocupados por ordem legal de autoridade competente, ainda que de propriedade privada.
Logo, enquanto a droga estava no avião militar brasileiro, o crime ocorreu em território brasileiro por extensão, de acordo com o CPM.
O art. 23 da Lei 6/1985 – Lei Orgânica do Poder Judiciário espanhol, segue a regra quase universal de que a jurisdição sobre crimes cometidos em navios e aeronaves militares, onde quer que se encontrem, é do Estado de origem do veículo.
Assim, o Brasil tem jurisdição sobre o fato.
No entanto, como o fato foi descoberto no momento da inspeção de segurança nas bagagens da tripulação após o desembarque, durante a escala no aeroporto de Sevilha, a infração penal também é de jurisdição espanhola, já que tocou o solo do Reino da Espanha. Ou seja,o crime também foi cometido fora da aeronave militar brasileira.
Diante disso, o Ministério Público da Espanha poderá levar adiante o processo perante um juízo local ou pedir a transferência da jurisdição ao Estado brasileiro.
Qual o juízo brasileiro competente para processar este caso?
Episódio anterior, dos anos 1990, também envolvendo avião da FAB, foi julgado pela Justiça Federal no Rio de Janeiro, à luz do art. 109, V e IX, da CF.
De fato, em abril de 1999, um Hércules C-130 foi retido na Base Aérea do Recife com 32 kg de cocaína a bordo. A aeronave, que partira da capital fluminense e tinha como destino Clermont Ferrand, na França, com escala nas Ilhas Canárias, foi apreendida graças à Operação Mar Aberto, da Polícia Federal.
O oficial responsável pelo tráfico foi condenado a 16 anos de reclusão pela Justiça Federal, em sentença confirmada pelo TRF-2. Posteriormente, em 2015, o STM determinou a perda de seu posto e patente, ao atender representação para declaração de indignidade para o oficialato, apresentada pelo MPM.
No entanto, isto foi antes da Lei 13.491/2017, que alterou o art. 9º do Código Penal Militar (Decreto-lei 1001/1969) e que, com isto, ampliou a competência da Justiça Militar para julgar crimes previstos na legislação comum. Leia mais aqui.
Por força desse dispositivo, vigente desde 2017, a competência para processar e julgar crime de narcotráfico internacional cometido por militar das Forças Armadas agora é inequivocamente da Justiça Militar da União.
Tal lei deve ser compatibilizada com o art. 109, inciso IX, da Constituição, que atribui aos juízes federais a competência para julgar os crimes cometidos a bordo de navios ou ou aeronaves, mas ressalva a competência da Justiça Militar.
Se viesse a ser proposta no Brasil (e não na Espanha), a ação penal imputaria ao réu o crime do art. 33 da Lei n. 11.343/2006, combinado com o art. 40, incisos I e II da mesma Lei e com o art. 9, do CPM.
Em razão da alteração do art. 9º do CPM, ocorrida em 2017, tornou-se possível a aplicação deste dispositivo legal em lugar do art. 250 do CPM, que tem pena máxima de 5 anos de reclusão.
E se houver uma associação criminosa para o narcotráfico?
Os destinatários da carga e os remetentes da droga ao exterior poderão ser investigados no Brasil e na Espanha. Havendo duas ou mais pessoas envolvidas no crime em tela, pode haver acusação adicional pelo crime do art. 35 da Lei 11.343/2006:
Art. 35. Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º , e 34 desta Lei:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil e duzentos) dias-multa.
Para evitar duas investigações simultâneas sobre os mesmos fatos, o ideal é a coordenação operacional entre o MPM e outras autoridades brasileiras com autoridades similares espanholas. Há instrumentos de cooperação internacional que podem viabilizar a articulação dos órgãos de investigação, seja no marco bilateral, seja com base na Convenção de Viena de 1988 e na Convenção de Palermo de 2000. Por exemplo, a formação de uma equipe conjunta de investigação (joint investigation team) abreviaria a produção probatória, que seria também mais eficiente.
Qual o foro competente na Justiça Militar da União?
Em razão do art. 91 do CPPM (Decreto-lei 1002/1969), o foro competente é o da auditoria militar em Brasília, observado porém o art. 92 do mesmo código.
Crimes fora do território nacional
Art. 91. Os crimes militares cometidos fora do território nacional serão, de regra, processados em Auditoria da Capital da União, observado, entretanto, o disposto no artigo seguinte.
Este dispositivo deve ser lido em conjunto com o parágrafo único do art. 27 da Lei Orgânica da JMU, incluído pela Lei 13.774/2018:
Art. 27. Compete aos conselhos:
I – Especial de Justiça, processar e julgar oficiais, exceto oficiais-generais, nos delitos previstos na legislação penal militar,
II – Permanente de Justiça, processar e julgar militares que não sejam oficiais, nos delitos a que se refere o inciso I do caput deste artigo.
Parágrafo único. Compete aos Conselhos de Justiça das Auditorias da circunscrição com sede na Capital Federal processar e julgar os crimes militares cometidos fora do território nacional, observado o disposto no Decreto-Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969 (Código de Processo Penal Militar) acerca da competência pelo lugar da infração.
Assim, concluída a investigação, caberá ao Ministério Público Militar em Brasília promover a ação penal contra o militar da FAB, perante a Justiça Militar da União, com base no art. 109, IX, da CF e no art. 9º, do CPM.