O réu tinha 18 anos quando matou uma pessoa e feriu outras quatro.
Em qualquer país do mundo, esse réu teria sido julgado e condenado e cumpriria uma pena equivalente à gravidade dos crimes de que foi acusado.
No entanto, esse réu tinha um bom advogado e recursos sem fim ao seu dispor. Melhor do que isso: tinha a lei penal a seu favor.
A lei que deveria proteger a todos, neste caso só serviu aos interesses do acusado e de seu cúmplice.
Em 25 de maio de 2000, os dois participaram de um churrasco com amigos. Na madrugada, após a festa, já sob influência de álcool, ambos se engajaram num racha ou pega.
A “inaceitável disputa automobilística” foi realizada nas ruas da cidade de Adamantina/SP, entre elas a Avenida da Saudade, sentido “Cemitério-Centro”. Depois de passar por ali, os rachadores enviaram uma pessoa no sentido Centro-Cemitério. Os veículos que eles conduziam se chocaram, e a universitária Taisa Tondinelli Emerich, de 18 anos, morreu ali mesmo de traumatismo craniano.
Os caronas Daiel Lima, Fabiano Morita Borri, Marlon Edjan Teixeira e Edilson Roberto dos Reis ficaram feridos.
Quase duas décadas após os fatos, o STF pôs fim ao caso e livrou definitivamente o Sr. Réu das consequências de seus atos.
Em 11 de dezembro de 2018, ao julgar o HC 1.653.76/SP, relatado pela Min. Cármen Lúcia, a 2ª Turma do STF decretou a prescrição da pretensão punitiva do Estado de São Paulo em relação a um dos responsáveis pelos fatos que tiraram a vida de uma jovem mulher e feriram outros quatro indivíduos.
Não adiantou a condenação pelo tribunal do júri em 2007, na comarca de Adamantina/SP.
As provas da autoria e da materialidade não serviram.
O que valeu foi o tempo, com cláusula benéfica, de uma lei anacrônica, feita para um País dos anos 1940, no qual a idade adulta começava aos 21 anos, e não aos 18, como é entre nós desde 2002. Um país no qual a criminalidade era infinitamente menor.
Mas esse tempo prescricional, considerado pelo STF, foi fixado a partir de uma ficção jurídica, que impede a reformatio in pejus indireta, em caso de recurso exclusivo da defesa. Como o réu fora condenado no primeiro julgamento pelo tribunal popular a 12 anos de reclusão, um novo júri, ainda que garantida a soberania dos vereditos dos sete jurados, não poderia resultar em pena maior do que 12 anos. Esta tem sido a posição do STF desde 2001, em caso relatado pelo min. Celso de Mello:
HABEAS CORPUS – TRIBUNAL DO JÚRI – REFORMATIO IN PEJUS INDIRETA – RECURSO EXCLUSIVO DA DEFESA – EXASPERAÇÃO DA PENA DETERMINADA PELO JUIZ-PRESIDENTE – INADMISSIBILIDADE – PEDIDO DEFERIDO. – O Juiz-Presidente do Tribunal do Júri, quando do segundo julgamento, realizado em função do provimento dado a recurso exclusivo do réu, não pode aplicar pena mais grave do que aquela que resultou da anterior decisão, desde que estejam presentes – reconhecidos pelo novo Júri – os mesmos fatos e as mesmas circunstâncias admitidos no julgamento anterior. Em tal situação, aplica-se, ao Juiz-Presidente, a vedação imposta pelo art. 617 do CPP” (STF, 1ª Turma, HC n. 73.367/MG, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 12/03/1996).
Entende o STF que a condenação anterior – mesmo que anulada (e este é um ponto crucial no caso concreto) – fixa o novo patamar para a determinação da prescrição. O julgamento do júri foi anulado pelo STJ (HC 101.610/SP, rel. Min. Og Fernandes) porque o réu foi pronunciado pela 1ª Câmara Criminal “A” do TJ/SP, que fora composta com violação à Constituição e à Lei Complementar Estadual 646/1990. Foi esta câmara irregular que, em 2006, proveu o recurso em sentido estrito do MP paulista para que os réus fossem a júri.
Com a anulação da pronúncia, desapareceu um marco interruptivo da contagem do curso do prazo prescricional. Novo acórdão de pronúncia foi proferido em 2009, agora pela 4ª Câmara Criminal do TJ/SP.
O júri foi remarcado apenas para 5 de dezembro de 2018, mas, em novembro deste ano, a ministra Cármen Lúcia concedeu liminar em habeas corpus e determinou a suspensão da sessão do júri até o julgamento do mérito deste HC pelo STF.
Na ocasião, disse a ministra:
Este caso patenteia, mais uma vez, a gravidade das consequências da mora judiciária. Mais que lamentável, chega a ser vexatório para o sistema de justiça num Estado de Direito, que crime supostamente cometido e denunciado há dezoito anos, com autoria do fato identificada e materialidade comprovada, não tenha tido a finalização do julgamento devido. Envergonha cada integrante do poder judiciário vermos o não funcionamento devido do sistema, impedindo que se conclua julgamento como resposta punitiva ou absolutória, mas a prestação devido do serviço da jurisdição.
No crime de homicídio, a prescrição se dá em 20 anos. Porém, como a pena fixada no júri que acabou anulado foi de 12 anos, o novo marco prescricional passou a ser de 16 anos, não mais 20.
Então, veio a pá de cal no destino do processo e da vítima que perdeu a vida. Como o Sr. Réu tinha mais de 18 e menos de 21 anos na data dos fatos, a prescrição é reduzida da metade, passando a ser de 8 anos. É seu direito, previsto em lei, mas uma lei que já devia ter sido revogada pelo menos desde 2002.
Essa soma de eventos fulminou a vida de uma pessoa – matamos mais de 37 mil concidadãos todos os anos em eventos relacionados a trânsito – e no final desta história tipicamente brasileira, o culpado continuou inocente, mesmo após prova em contrário. A vítima continuará estirada no chão até que o tempo leve todos os vestígios de sua existência. E sua família entrará mais um ano à espera de Justiça, mas agora sabendo que não a terá.
A lei que corta o prazo da prescrição por idade não produz justiça pela metade; não produz justiça alguma e racha a imagem da Justiça.