Por Vladimir Aras
Diante da ordem jurídica boliviana, há duas soluções para que Battisti passe à custódia das autoridades italianas.
Eis a primeira opção:
1) um novo processo de extradição, iniciado a pedido de Roma e endereçado a La Paz. Seria o terceiro procedimento extradicional, pois Battisti antes escondeu-se na França e no Brasil. Perdeu a batalha forense nos dois países e também não teve êxito quando tentou mudar sua sina na Corte Europeia de Direitos Humanos, em Estrasburgo.
Agora vejamos a segunda opção:
2) uma medida migratória similar a deportação ou expulsão poderia ser aplicada imediatamente a Battisti pelas autoridades bolivianas, pois é mais do que provável que sua entrada na Bolívia ocorreu de maneira irregular e que sua permanência naquele país também o seja. Se uma medida migratória for imposta, o fugitivo voltaria ao Brasil e seria entregue à Itália. Mas também pode ser entregue diretamente a Roma.
O art. 25 da Lei 370/2013 (Ley de Migración) da Bolívia diz ser irregular o ingresso de estrangeiro no território boliviano nas seguintes situações:
“1. Ingreso al país por lugar no habilitado.
2. Ingreso al país por lugar habilitado evadiendo u omitiendo el control migratorio.
3. Ingreso al país sin la correspondiente documentación o con documentación falsa”.
Creio que a situação de Battisti se resolverá rapidamente, mas casos como o dele podem gerar novos imbróglios jurídicos a favorecer a impunidade.
Por exemplo, o governo boliviano pode entender necessário um pedido de extradição, desta feita da Itália à Bolívia. Os temas da prescrição dos homicídios pelos quais Battisti foi condenado e da suposta natureza “política” desses crimes poderiam voltar a ser discutidos, tal como se deu perante o nosso STF.
Ademais, em tese, Battisti poderia repetir o pedido que fez após ser preso no Brasil em 2007. Qualquer pessoa que se considera perseguida, pode requerer ao governo em La Paz o reconhecimento da condição de refugiado. Foi exatamente o que ele fez em 21 de dezembro de 2018. Pediu refúgio à Comisión Nacional de Refugiados. Se concedido o refúgio por suposta “perseguição política”, o que é bastante improvável à luz da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (Genebra, 1951), Battisti não poderia ser extraditado para Roma nem devolvido ao Brasil.
Cesare Battisti preso na Bolívia em janeiro de 2019. Foto: Interpol Bolivia
O art. 26, § II, n. 5 da Lei 370/2013 prevê a medida de “prohibición de ingreso al territorio nacional”. Cuida-se de uma decisão administrativa pela qual a autoridade migratória (Dirección General de Migración) nega ao estrangeiro “el ingreso, ordenando su inmediato retorno al país de origen o a un tercer país que lo admita”.
Tal medida compulsória pode ser aplicada a estrangeiros que “se encuentren perseguidos penalmente en el exterior y cuenten con mandamiento de captura o haber sido condenados en el país por delitos penales y previo cumplimiento de la pena”, conforme o estabelecido em tratados ratificados pela Bolívia.
A Lei Migratória da Bolívia também permite a negativa de ingresso de estrangeiros “condenados por delitos de Lesa Humanidad, Trata y Tráfico de Personas, Tráfico de Armas, Lavado de Dinero,Tráfico de Sustancias Controladas, Genocidio, Crímenes de Guerra, Terrorismo”, conforme os tratados de que o país é parte.
Visto o quadro, a melhor solução para os três Estados soberanos envolvidos é a aplicação de medida administrativa compulsória pela autoridade migratória boliviana, para que Battisti seja deportado da Bolívia e entregue à Polícia Federal em Corumbá ou noutra cidade brasileira.
Chegando ao Brasil, os passos seguintes estariam a cargo da Polícia Federal e do Ministério da Justiça, a quem cabe cumprir as decisões do STF e do ex-presidente Temer de extraditá-lo a Roma. Pelo que se notícia na imprensa, é intenção do presidente Jair Bolsonaro manter a ordem de entrega, fazendo valer a tradição brasileira de cooperação internacional contra o crime.
Note, porém, que o art. 26, §§ I e II, da Lei de Migrações boliviana permite expressamente que o estrangeiro em situação migratória irregular seja devolvido ao país de origem (que no caso é o Brasil) ou entregue a um terceiro país que o admita. Neste último caso, Battisti iria direto da Bolívia para a Itália. Esta seria a rota mais curta.
Como quer que seja, todos os trajetos de Cesare Battisti serão por caminhos que o levarão a Roma.
A Lei boliviana também permite a medida migratória de “salida obligatoria” (arts. 37 e 38) mediante a qual se determina que “la persona migrante extranjera abandone el territorio nacional en el plazo de quince (15) días hábiles a partir de su legal notificación”.
Vários países admitem o uso de medidas migratórias para a devolução de foragidos. Porém, a Lei 13.445/2017, a nossa Lei de Migração (arts. 53 e 55, I) parece não autorizar procedimento semelhante, porque, na leitura atual, isto constituiria uma burla em forma de “extradição inadmitida”. Também era esta a interpretação na vigência da Lei 6.815/1980, o revogado Estatuto do Estrangeiro.
O Brasil já se beneficiou dessa via mais rápida em várias oportunidades, por exemplo, com a Tailândia, no caso PC Farias; com o Paraguai, nos casos Roger Abdelmassih e Marcelo Piloto; e com os Estados Unidos.
Por vedação legal, o Brasil não tem fast track para devolver foragidos a justiças estrangeiras. Tudo tem de passar por um processo de extradição no STF. A Lei Migratória não autoriza outro meio, e o tratado regional que institui a via simplificada do mandado Mercosul de detenção e entrega (MMC) ainda não está em vigor. Embora aprovado pelo Congresso Nacional, como Decreto Legislativo 138, de 9 de agosto de 2018, o Acordo de Foz do Iguaçu de 2010 ainda depende de promulgação por decreto presidencial e de ratificação por outros Estados membros do Mercosul.
Também são úteis em casos como este mecanismos de cooperação policial expedita. Países com grandes fronteiras terrestres devem poder usar medidas de vigilância transfronteiriça e de perseguição policial transfronteiriça (hot pursuit ou persecución en caliente), para situações de flagrante. Em 2016, o MPF sugeriu ao governo brasileiro que adotasse esse mecanismo. Em novembro de 2018, o então ministro Jungmann anunciou que proposta semelhante foi aprovada em Montevidéu, na 42ª Reunião de Ministros de Interior e Segurança do Mercosul e Estados associados. Doravante será possível a formalização de um acordo de cooperação policial aplicável a espaços fronteiriços e a cidades gêmeas.
Noticiou a EBC:
Os ministros do bloco aprovaram a proposta do governo brasileiro para acordo de cooperação que prevê a perseguição transfronteiriça entre os países-membros, um arranjo inédito que vai permitir a continuação de uma perseguição policial, mesmo após o ingresso em território de países vizinhos.
Segundo noticiou o jornal italiano La Repubblica, uma vez na Itália, Battisti “sconterà una pena massima di trent’anni a causa di un accordo con Brasile dove non c’è l’ergastolo”. Ou seja, o condenado cumpriria pena máxima de 30 anos porque não há prisão perpétua no Brasil.
Eis mais um tópico interessante. De fato, quanto à pena em si, são duas situações:
1) se Battisti for devolvido diretamente a Roma por La Paz, ele cumprirá as penas que a Justiça italiana fixou, sem qualquer limitação. Parto do pressuposto de que neste caso a Bolívia aplicaria simples medida migratória de deportação ou expulsão (salida obligatoria).
Mas, 2) se Battisti retornar ao Brasil e for daqui extraditado por Brasília a Roma, como autorizou o STF, os limites da cooperação extradicional devem ser observados. Isto é: as condições fixadas pelo STF para a entrega de Battisti à Itália devem ser cumpridas.
Que condições? Tradicionalmente, o STF condiciona a entrega de foragidos a outros países a dois requisitos: a) não haver a aplicação de pena de morte ao extraditando; e b) não ser o condenado submetido a prisão perpétua.
Exige-se de antemão que o Estado estrangeiro assuma o compromisso de limitar o cumprimento da pena privativa de liberdade a 30 anos de prisão.
Porém, considerando a atual idade do condenado, 64 anos, dificilmente Cesare Battisti cumprirá mais de 30 anos no cárcere, ainda que seja, fosse ou pudesse ser submetido a execução da pena de prisão perpétua a que foi condenado na Itália.
A Constituição brasileira veda a pena de morte e a prisão perpétua e trata tais vedações como cláusulas pétreas. Tais óbices são transplantados, como condições, para a cooperação internacional que o Brasil presta a outros países. O limite trintenário para cumprimento de pena não tem base constitucional. Resulta da jurisprudência do STF, que costuma invocar o art. 75 do Código Penal, que institui este máximo para execução penal no Brasil.
Há vários exemplos de fixação desse limite de 30 anos em pedidos de extradição deferidos pelo STF. Cito dois da cooperação do Brasil com os EUA, país onde há pena de morte e prisão perpétua:
1) caso Victor Barnard, o falso pastor líder de uma seita que foi acusado de ter estuprado duas adolescentes dezenas de vezes em Minnesota;
2) caso Cláudia Hoerig, a contadora acusada do homicídio de seu marido, o oficial aviador Karl Hoerig, major da Força Aérea americana em Ohio.
Nos dois casos, os Estados Unidos tiveram de assumir compromissos formais perante o Ministério da Justiça de que as pessoas extraditadas não cumpririam mais de 30 anos presas, caso viessem a ser condenadas.
Em 2016, Victor Barnard foi julgado e condenado a 30 anos de prisão, após aceitar um acordo penal (plea bargain) com a Promotoria do condado de Pine, em Minnesota.
Neste mês de janeiro de 2019, será a vez de Claudia Hoerig ser julgada. Seu processo tem curso perante o júri do condado de Trumbull, no Estado de Ohio. Espera-se que Hoerig cumpra a pena pelo crime de que é acusada e que as autoridades locais cumpram o que prometeram ao Estado brasileiro.
Com Battisti em Roma, algo semelhante deverá acontecer, apenas se antes ele passar pelo Brasil, para a conclusão do processo extradicional. Esta hipótese é a menos provável.
Se o voo que o levar à Itália seguir diretamente do território boliviano, sem escalas forenses por aqui, obviamente não há nenhuma condição trintenária a observar, e a pena de prisão perpétua (ergastolo) será aplicada. Esta pena é prevista no art. 22 do Código Penal de 1930. O réu condenado a perpétua tem direito a liberdade condicional após o cumprimento de intervalo de pena de algo entre 20 e 26 anos, a depender do crime e do comportamento carcerário.
Desde 2013, no caso Vinter and Others v. the United Kingdom, a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) entende que a pena perpétua sem possibilidade de revisão periódica ou de livramento condicional viola o art. 3º da Convenção Europeia de 1950, porque equivale a tratamento desumano ou degradante.
Certo é que Cesare Battisti deixará Santa Cruz e seguirá sua rota romana.