Por Vladimir Aras
O caso Lava Jato chamou a atenção da opinião pública brasileira para a corrupção sistêmica que sangra o Brasil desde que caravelas singraram estes mares. Vários países na nossa região enfrentam problemas semelhantes, seja nas diversas ramificações do escândalo Odebrecht, no Peru, Colômbia, Panamá, Venezuela, República Dominica, Equador, Argentina etc, seja noutros casos igualmente graves, que atingem nações como a Guatemala, México, Honduras, El Salvador e Chile.
Desde os anos 1990, a grande corrupção ganhou status de crime de grande relevância internacional. Não há um tribunal internacional para julgá-la, mas várias organizações tem-se ocupado do fenômeno em suas vertentes sociais, econômicas, políticas e criminológicas.
Em 1996, este conjunto de condutas tornou-se objeto da Convenção Interamericana contra a Corrupção, concluída em Caracas. No ano seguinte, a Convenção da OCDE sobre corrupção de funcionários públicos estrangeiros em transações comerciais internacionais foi aberta a assinaturas em Paris. Em 2003, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC), concluída em Mérida, passou a ser o principal acordo global contra esse gênero de crimes, que envolve a corrupção ativa, a corrupção passiva, o peculato, a corrupção privada (suborno) e a lavagem de dinheiro, além de crimes correlatos, como a obstrução da justiça.
Pode-se dizer portanto que há um regime global de proibição da corrupção, que compõem o grupo de “bribery and corruption suppression treaties”, um marco normativo de quatro eixos destinados à:
A) criminalização de certas condutas graves;
B) especificação de regras de jurisdição sobre tais crimes;
C) adoção de ferramentas modernas e eficientes de persecução criminal e de prevenção do crime; e
D) introdução ou melhora de mecanismos de cooperação jurídica internacional.
Outras iniciativas globais refletem essa preocupação como a atuação do GAFI/FATF contra a lavagem de ativos no sistema financeiro, e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), adotados pelas Nações Unidas no âmbito de sua Agenda 2030. Até aquele ano, pretende-se enfrentar uma série de desafios mundiais na luta pela saúde, educação, igualdade, meio ambiente, desenvolvimento etc.
Focado no rule of law, o ODS 16 trata de paz, justiça e instituições fortes e visa a “promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”. O ODS 16 é muito específico no propósito de reduzir os fluxos de ativos ilícitos e de dinheiro sujo no planeta, aperfeiçoar a recuperação de ativos desviados ou lavados e também combater todas as formas de corrupção.
A razão é simples. Há cada vez mais consenso num ponto. A corrupção mina a capacidade dos Estados de enfrentar a pobreza e a marginalização, torna mais difícil a promoção da saúde, do saneamento básico e da educação, compromete os meios materiais disponíveis para a expansão de projetos de infraestrutura e o desenvolvimento socioeconômico e dificulta a persecução de crimes graves, que vitimam milhões de pessoas em todo o mundo, notadamente as diversas formas de tráfico e os delitos ambientais, que desabrigam milhares e privam outros tantos de seus meios de vida sustentáveis. Nesta linha, a corrupção endêmica, num contexto local ou regional, reduz a riqueza nacional, aumenta as desigualdades e impede o avanço das nações nos índices de desenvolvimento humano.
Por isso mesmo, não é de se estranhar que as relações entre corrupção e direitos humanos tenham entrado nos debates forenses em tribunais internacionais, pois práticas corruptas endêmicas ou sistemáticas num dado país costumam violar sobretudo os direitos de populações vulneráveis no acesso aos bens da civilização e no gozo dos direitos assegurados nas constituições e em diversos tratados, dos quais merecem menção o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966; a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969; a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979; a Convenção dos Direitos da Criança, de 1989; a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2006, entre outros.
Igualmente importante é o papel da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como intérprete e guardiã dos direitos fundamentais dos cidadãos das Américas. No caso Ramírez Escobar y otros vs. Guatemala, a Corte IDH trouxe a lume s relação intrínseca entre corrupção e vitimização, e vitimização de crianças no caso concreto, que de relacionava a adoções ilegais. Ao julgar que a Guatemala violou o direito internacional, a Corte enfatizou que:
241. Al respecto, este Tribunal destaca las consecuencias negativas de la corrupción y los obstáculos que representa para el goce y disfrute efectivo de los derechos humanos, así como el hecho de que la corrupción de autoridades estatales o prestadores privados de servicios públicos afecta de una manera particular a grupos vulnerables. Además, la corrupción no solo afecta los derechos de los particulares individualmente afectados, sino que repercute negativamente en toda la sociedad, en la medida en que “se resquebraja la confianza de la población en el gobierno y, con el tiempo, en el orden democrático y el estado de derecho”. En este sentido, la Convención Interamericana contra la Corrupción establece en su preámbulo que “la democracia representativa, condición indispensable para la estabilidad, la paz y el desarrollo de la región, por su naturaleza, exige combatir toda forma de corrupción en el ejercicio de las funciones públicas, así como los actos de corrupción específicamente vinculados con tal ejercicio”.
242. La Corte recuerda que los Estados deben adoptar las medidas para prevenir, sancionar y erradicar eficaz y eficientemente la corrupción. No obstante, como se mencionó previamente, el sistema de protección de la niñez y los mecanismos de adopción vigentes en Guatemala en la época de los hechos, lejos de cumplir estas obligaciones, proporcionaron espacios para que tuviera lugar y permitieron la formación y mantenimiento de las redes de adopciones ilegales en Guatemala. El presente caso podría reflejar una materialización de este contexto. La Corte destaca que las adopciones internacionales se dieron dentro de un marco de corrupción, en el que un conjunto de actores e instituciones públicos y privados operaban bajo el manto de la protección del interés superior del niño, pero con el real propósito de obtener su propio enriquecimiento. En este sentido, la maquinaria que se montó y toleró alrededor de las adopciones ilegales, la cual afectaba de manera particular a sectores pobres, tuvo un fuerte impacto negativo en el disfrute de los derechos humanos de los niños y sus padres biológicos.
Este tema da interconexão entre Direitos humanos (lesionados) e corrupção (sua violadora ou potencializadora) realmente entrou na agenda global e assim será no curso dos próximos anos, no âmbito do ODS 16, e no cumprimento dos mencionados tratados e da Constituição.
Doravante, é de se esperar que a partir do precedente Ramírez Escobar y otros vs. Guatemala, a Corte IDH, em San José, aprofunde a sua compreensão sobre a corrupção sistêmica (grand corruption) como violadora dos direitos à educação, à saúde, à segurança pública, ao saneamento básico, ao meio ambiente sustentável e ao direito genérico de qualquer democracia: o direito do povo a governos honestos.