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Desde 2016, o Conjunto Penal de Feira de Santana é alvo de diversas ações na Justiça que estão relacionadas a irregularidades estruturais, que poderiam colocar em risco a vida dos custodiados, das pessoas que ali trabalham e da sociedade. Agora, uma incongruência no posicionamento do Ministério Público envolveu o presidente do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), membros do Parquet, o governo do Estado e a Defensoria, em um caso com diversas decisões judiciais polêmicas.
O complexo tem capacidade para receber 1.356 detentos, em 316 celas com 12 m² cada, mas apenas 1.108 vagas poderiam ser usadas, porque o minipresídio não é utilizado por falta de servidores. Mesmo assim, até agosto, 1.978 presos de 76 cidades baianas eram custodiados do Conjunto Penal sem separação por regime semiaberto e fechado. A unidade conta ainda com baixo efetivo: são 169 agentes penitenciários, sendo 121 homens e 48 mulheres. Em cada plantão, são apenas 20 agentes para cuidar de todo o estabelecimento.
O imbróglio judicial no Conjunto Penal começou novembro de 2016. Naquela época, havia a expectativa de que o problema do presídio seria resolvido com a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Estado da Bahia, através da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) (confira aqui). O acordo previa a criação de 260 vagas na unidade prisional em até um ano e três meses. Também indicava a desativação dos pavilhões 6 e 7 e do “minipresídio”. Pelo acordo, cada pavilhão teria 76 vagas e o minipresídio 108. A Seap havia assumido o compromisso de separar, em 15 meses, os presos sentenciados a regime fechado do semiaberto, e os presos provisórios dos definitivos no prazo de 30 dias. Os detentos com mais de 60 anos também deveriam ser separados. O acordo tem valor jurídico de sentença transitada em julgado.
Ocorre que, quase dois anos depois de assinado, o acordo não foi integralmente cumprido pelo Estado. Por isso, em abril deste ano, o juiz Waldir Viana, da Vara de Execução Penal de Feira, determinou, via sentença, a interdição por tempo indeterminado do Conjunto Penal para não receber novos presos de diversas cidades da Bahia (saiba mais). No início de agosto, o presidente do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), desembargador Gesivaldo Britto, suspendeu a “liminar” para desinterditar a unidade prisional, a pedido do Estado, sob o argumento de que a obstrução agravaria ainda mais o problema da superlotação carcerária em outras unidades do estado (veja aqui). Diante da decisão do presidente do TJ, a Defensoria Pública da Bahia pediu a liberação de presos do regime semiaberto para o domiciliar para que não permaneçam em um regime prisional mais grave do que ao qual foram condenados (veja aqui). A Defensoria baseou as ações no entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), através da Súmula Vinculante 56, que estabelece que “a falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso”. A liberação dos presos, que já somam mais de 250 (clique aqui), ocorreu a partir de critérios previstos na Lei de Execuções Penais. Os detentos liberados para o regime domiciliar ainda foram obrigados pelo juiz a comparecer mensalmente ao cartório do Juízo da cidade para informar suas atividades, a não mudar de residência sem autorização judicial, e a se recolher em casa entre 22h às 6h da manhã, nos dias úteis. Aos finais de semana e feriado, só podem sair com autorização judicial. Também foram proibidos de frequentar bares ou locais de entretenimento com venda de bebidas alcoólicas, de praticar jogos de azar, prostituição ou outras atividades ilícitas. Os presos que foram liberados para prisão domiciliar não têm monitoramento eletrônico. A Seap afirma que há uma licitação para compra de 3,2 mil equipamentos, mas que ainda não foi concluída.
Quando o presidente do TJ acatou o pedido do Estado, feito em uma “suspensão de liminar”, os promotores de Justiça de Feira de Santana enviaram uma carta endereçada para a procuradora-geral de Justiça, Ediene Lousado, em urgência, para demonstrar “irresignação” com a “suspensão da liminar” para determinar a desinterdição. Os signatários da carta defenderam à procuradora-geral que o presidente do TJ, na verdade, suspendeu os efeitos de uma “sentença transitada em julgado” nos autos de uma ação civil pública movida pelo MP em 2016, que culminou com a assinatura do TAC. Os promotores alertaram que tal possibilidade “aparentemente” não está prevista no sistema processual brasileiro. Os membros do MP de Feira de Santana se disseram “surpreendidos” com a “suspensão da liminar”, reestabelecendo o regular funcionamento do presídio, e reforçaram que não havia “anterior decisão liminar determinando a interdição e sim uma sentença determinando o cumprimento” do TAC. Eles “lamentaram” a decisão do presidente do TJ e cobraram a adoção de medidas judiciais por parte da cúpula do MP para “pronto restabelecimento do devido processo legal”.
Logo depois da manifestação da Promotoria de Feira de Santana, o Ministério Público da Bahia apresentou um agravo interno. O recurso, protocolado no dia 28 de agosto, foi assinado pela procuradora-geral de Justiça Adjunta Sara Mandra Rusciolelli e pelo promotor de Justiça Gervásio Lopes da Silva. No agravo, a Procuradoria aponta que o presidente do TJ considerou “desacertada” a decisão do juiz Waldir Viana por haver ingerência indevida do Poder Judiciário nas ações do Executivo, mas que não observou “os limites estabelecidos na legislação pertinente”. Além do mais, o desembargador não apontou como a decisão afetaria as contas públicas. Foi dito ainda que, no caso, não houve interferência do Judiciário e violação ao princípio da separação dos poderes. Ainda considerou a decisão de 1º Grau como irretocável. “Embora, como dito alhures, não seja este o instrumento processual adequado para a discussão dos aspectos meritórios da decisão de 1º Grau, parece prudente, por mera cautela, asseverar que esta já foi corretamente prolatada pelo magistrado de piso, não configurando, in caso, a alegada interferência indevido do Judiciário em matéria de competência discricionária do Poder Executivo”. Por fim, o agravo interno pediu a manutenção da interdição do Conjunto Penal de Feira.
Mesmo com o pedido, 37 dias após o envio do agravo, a Procuradoria Geral de Justiça moveu uma reclamação disciplinar no TJ, pedindo que a questão seja julgada diretamente em sessão plenária, não esperando que os recursos da conversão das prisões domiciliares fossem julgados por uma Câmara Criminal. Tal reclamação, protocolada no dia 5 de outubro, foi assinada pela procuradora-geral de Justiça, Ediene Lousado, junto com o promotor de Justiça Cristiano Chaves, assessor especial de PGJ. A reclamação disciplinar é um remédio processual que suprime algumas instâncias judiciais em julgamento. No documento, Ediene afirma que as decisões do juiz Waldir Viana, de converter prisões do regime semiaberto para o domiciliar, são “temerárias” e violam “a autoridade de decisão proferida por essa ilustre Presidência (em sede de suspensão de eficácia de decisão judicial) e, ao mesmo tempo, usurpando, ao assim proceder, competência originária desse pretório, decorrente de mandamento constitucional”.
O novo posicionamento do MP afirma que a determinação do magistrado de Feira de Santana, além de “afrontar diretamente a autoridade da decisão dessa Presidência [do TJ-BA], está totalmente dissociada dos parâmetros legais”, previstos na Lei de Execuções Penais. A procuradora-geral de Justiça ainda considera as decisões de Viana como “um perigoso precedente caracterizador de uma verdadeira chantagem contra o Poder Público”. Informou que a Seap cede espaço “idôneo e suficiente para relocação de presos” – o “que esvazia, por completo, a alegada conversão do regime semiaberto para domiciliar realizada, indevidamente, pelo magistrado”. Por tais motivos, pediu que o caso seja julgado diretamente em sessão plenária do TJ-BA. Ainda destacou que o magistrado de piso deveria “manter a parametrização da decisão da Presidência da Corte de Justiça, garantindo o funcionamento regular do Conjunto Penal, sem converter em regime semiaberto em prisão domiciliar, sob o argumento que o Estado não disponibiliza no referido estabelecimento as condições necessárias para o cumprimento da pena”.
A Defensoria Pública da Bahia pediu para participar do julgamento da reclamação constitucional na condição de amicus curiae (amigos da Corte) por envolver seus assistidos. No pedido, a Defensoria destaca que o próprio MP-BA interpôs um agravo para reformar a decisão do presidente do TJ, que suspendeu a interdição do Conjunto Penal, com a manutenção da sentença do juiz Waldir Viana, de abril deste ano. Para a Defensoria, não estão presentes os requisitos legais para o ajuizamento da reclamação constitucional por parte do MP, “não havendo que se falar em violação da autoridade da decisão proferida” pelo presidente do TJ-BA, pelo fato do agravo não ter sido julgado por instâncias ordinárias. Destacou que os recursos contra a conversão do regime semiaberto para o domiciliar também observa as regras do devido processo legal. A Defensoria reforçou que a conversão das prisões do regime semiaberto para o domiciliar estão previstas na Súmula 56 do STF. Lembrou ainda que o próprio MP apresentou um agravo interno contra a desinterdição do Conjunto Penal. A Defensoria asseverou que a situação da unidade prisional ainda é precária e elencou que “manter a parametrização” da decisão do presidente do TJ “não implica que o juízo a quo deve inobservar os princípios constitucionais, mormente o da dignidade da pessoa humana, que, dentro desta matéria, reforça que o apenado deve ser tratado, acima de tudo, como pessoa humana, digna de um tratamento que atenda suas necessidades básicas, ao mesmo tempo que cumpre a pena prevista, no regime que lhe foi imposto”. O pedido é assinado pelos defensores públicos Helaine de Almeida, Fabíola de Menezes e Raul Palmeira.
O juiz Waldir Viana se posicionou sobre os questionamentos da reclamação constitucional, a pedido do TJ-BA. No ofício encaminhado a Gesivaldo Britto, o magistrado sustenta que é incabível a reclamação do MP-BA, por tentar suprimir instâncias no julgamento dos recursos ao levar o caso para o Pleno do TJ-BA. Ele classificou o pedido como uma “jogada de mestre”. Destacou que todas as decisões de converter o regime semiaberto em domiciliar foram impugnadas em um recurso específico, no caso, o agravo em execução penal, e que os promotores de Feira assim o manejaram corretamente. Até o dia 18 de outubro, foram registrados 79 recursos. O magistrado afirma que a Procuradoria Geral de Justiça pretendeu usar “indevidamente” a reclamação constitucional como forma de “burlar o devido processo legal” e evitar que as decisões sejam analisadas por instâncias revisoras competentes, como as Câmaras e Turmas Criminais. No ofício, Viana rememora que a Procuradoria, no agravo interno contra a suspensão da liminar, “tece elogios” a sua decisão de interditar o presídio, de abril deste ano, e que a sentença é “irretocável em seu mérito”, e por isso, deveria ser mantida sua eficácia. Também afirmou que, 37 dias depois do agravo interno, para “perplexidade de todos”, o MP interpôs a reclamação para que a decisão do presidente do TJ-BA de desinterditar o presídio fosse mantida, com um pedido “diametralmente oposto” e incompatível com o recurso anterior.
Waldir Viana declarou que em nenhum momento o presidente do TJ-BA, desembargador Gesivaldo Britto, determinou que ele não analisasse, individualmente, os diversos pedidos e incidentes processuais de vossa competência material. Frisou que “toda e qualquer decisão judicial emanada de superior instância sempre foi, é, e sempre será imediatamente acatada por esse juízo”. “Enfim, é entristecedor, chega a desanimar, deparar com uma lide temerária como é esta reclamação, quando percebemos firmada pelo próprio Órgão de Cúpula do Ministério Público, o chefe da instituição. Este juízo não merece isso. O Poder Judiciário não merece isso”, lamentou.
A POSIÇÃO DO MP-BA:
O Bahia Notícias procurou o MP-BA para se posicionar sobre a possível contradição nos pareceres. O promotor de Justiça Alex Santana, de Feira de Santana, comunicou que já foram interpostos 221 recursos contra as decisões. Os recursos serão recebidos pelo juiz Waldir Viana, e, caso as decisões não sejam reconsideradas, serão encaminhadas ao TJ-BA. O promotor pede que a Vara de Execuções Penais “dê célere processamento a todos os recursos, face à urgência do pedido liminar neles formulado”. “A 3ª Promotoria de Justiça de Feira de Santana continua buscando incessantemente o cumprimento do TAC assinado com o Estado da Bahia, com vistas à regularização da situação do Conjunto Penal de Feira de Santana, e para tanto adotou todas as medidas processuais cabíveis, sem, entretanto, descurar da defesa da sociedade e da população feirense, exposta à situação de grave risco diante da soltura precoce e instantânea de grande número de presos. Desse modo, a 3ª Promotoria de Justiça de Feira de Santana entende que a desinterdição do Presídio não deveria implicar necessariamente na imposição desse ônus à população de Feira de Santana”, afirmou o promotor. Para ele, é necessário ressaltar que, em qualquer conflito de interesses, o MP-BA “sempre estará ao lado da sociedade e do interesse coletivo”, e que as decisões do magistrado de Feira colocam em risco “a estabilidade da segurança pública, na medida em que determina o retorno precoce ao convívio social, de sentenciados que não cumpriram integralmente as penas que lhes foram impostas e, portanto, não estão integralmente ressocializados para retornarem ao convívio permanente e harmonioso com a comunidade feirense, a qual não poderá arcar com as consequências destas decisões”. O promotor ainda reforçou que, em relação à reclamação, “a medida foi utilizada em razão da Instituição discordar da soltura de presos sem critério. A reclamação é estritamente no tocante a esta questão: o Ministério Público é contra a soltura de cerca de 200 presos, fato que afeta a segurança pública local”.
O QUE DIZ A SÚMULA 56 DO STF:
A Súmula 56 do Supremo Tribunal Federal (STF), publicada em agosto de 2016, foi invocada pela Defensoria Pública da Bahia como fundamento para a soltura dos presos do regime semiaberto. O texto, além de dizer que a “falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso”, determina que, não havendo vagas nos presídios, deverá expedir a saída antecipada de sentenciados no regime com falta de vagas e que a liberdade deverá ser eletronicamente monitorada. Cabe aos juízes da Execução Penal avaliar os estabelecimentos destinados aos regimes semiaberto e aberto, para qualificação adequada.
Fonte: Bahia Notícias