Nos 30 anos da Constituição Federal, o que temos a comemorar?
Marcando o fim do regime de exceção iniciado vinte anos antes, a Emenda Constitucional 26, de 1985, convocou a Assembléia Nacional Constituinte (ANC), unicameral, livre e soberana. Os 559 constituintes eleitos em 15 de novembro de 1986 se encarregariam de redigir a nova Constituição, uma promessa de Tancredo Neves que foi honrada pelo seu sucessor, José Sarney.
A ANC foi instalada pelo então presidente do STF, ministro José Carlos Moreira Alves, no dia 1º de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional em Brasília. No dia seguinte, o deputado Ulysses Guimarães foi eleito seu presidente.
Dominados por fortes disputas políticas, os trabalhos constituintes foram encerrados em setembro de 1988. Em 5 de outubro daquele ano, Ulysses Guimarães proclamou a nova ordem constitucional, que finalmente nos trouxe a democracia de que podemos gozar hoje.
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.”
Foram esses os valores que nos inspiraram naqueles anos.
Atualmente, a CF tem mais de cem emendas. Muitos falam em substituí-la por um novo texto.
Entre as pretensões reformistas, estão a de alterar o sistema político e o modelo previdenciário, a de reformar o Judiciário e o Ministério Público, uma instituição republicana que costuma incomodar a quem comete corrupção e a quem desrespeita os direitos humanos previstos nas leis e na Constituição.
Constituintes são eventos bissextos. Democracias estáveis não mudam de Constituição como mudam de roupa. Ao longo de nossa história, tivemos sete leis fundamentais: a imperial de 1824, a primeira republicana de 1891, as de 1934, 1937 e 1946, que foram seguidas das cartas outorgadas em 1967 e 1969. Graças à distensão que se consumou com a campanha pelas eleições diretas em 1984, pudemos sonhar com a nova Constituição de 1988, agora rejeitada por uns e criticada por outros.
A atual Constituição ainda não é a mais duradouro de nossa história, já que a Carta Imperial de 1824, outorgada sob D. Pedro I, vigorou por 67 anos, ao passo que a primeira constituição federal, também do século 19, vigeu por cerca de 43 anos.
A CF de 1988 não é a melhor do mundo, nem a mais clara ou a mais concisa, mas é a melhor que nos foi possível ter nas circunstâncias em que foi convocada a ANC de 1987. É a lei que nos protege a todos e é a lei que orienta os deveres dos poderes públicos para com o povo.
É curioso que quando chegamos a três décadas de vigência da Constituição estejamos em meio a debates sobre possíveis retrocessos democráticos, que nela impactariam.
A CF de 1988 nos deu uma bela carta de direitos fundamentais, que se inspira nas convenções internacionais e nas declarações universais de direitos humanos, que protegem os nossos direitos à vida, à propriedade, à liberdade, à honra, à imagem e à integridade física.
Deus-nos os direitos políticos de votar e sermos votados e os direitos sociais relativos ao trabalho, à previdência social e à assistência social e diversos direitos difusos, como os que nos garantem o meio ambiente saudável e o desenvolvimento sustentável, num desejado equilíbrio entre o progresso e a produção e a preservação dos recursos naturais e os interesses das populações tradicionais.
A CF nos deu diretrizes para a inserção do Brasil no mundo como uma nação que promove a cooperação internacional para a paz e para o progresso da humanidade e respeita a autodeterminação dos povos.
A CF de 1988 nos deu um Ministério Público autônomo, bem estruturado e projetado para a defesa dos cidadãos contra o próprio Estado e para a defesa de todos contra o crime e a improbidade.
A CF de 1988 nos deu um conjunto de princípios voltados para a defesa da legalidade, da probidade, da impessoalidade, da publicidade e da eficiência na Administração Pública. São regras que criam as bases do direito de todos a governos honestos e transparentes.
A CF nos devolveu a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e a liberdade de associação. Repudia a tortura e nos deu pela primeira vez de forma clara o direito à segurança pública, que os governos ainda nos sonegam.
A CF também nos legou uma série de problemas. Muito extensa, regulou o que não lhe cabia. Temas que deveriam estar previstos nas leis comuns viraram normas constitucionais, o que acaba gerando pressão por emendas, muitas emendas.
A CF faz seu 30° aniversário em meio a uma grave crise política, que põe em xeque o pacto da Nova República, e vivencia uma intervenção federal no Rio de Janeiro, este que é o retrato pronto e acabado do caos da segurança pública no Brasil.
Neste aniversário da Constituição, ao qual se seguirá o 129º ano da República, assistimos a uma deplorável divisão do País em facções e paixões.
Numa bela lição evangélica, registrada em Mateus 12:25, lemos que “Todo o reino dividido contra si mesmo é devastado; e toda a cidade, ou casa, dividida contra si mesma não subsistirá.” Uma das estratégias de Roma para conquistar e derrotar seus inimigos seguia exatamente a estratégia da divisão: divide et impera.
Não temos cuidado do nosso povo, que é assassinado aos milhares todos os anos. Não temos cuidado da nossa cultura, destruída e incendiada como se viu no Museu Nacional não faz muito. Não respeitamos nossos símbolos e nossos valores, não podemos comemorar títulos na ciência, somos iletrados e, muitas vezes, intolerantes.
Mas não vamos esmorecer. O Brasil é um belíssimo país, rico pelas qualidades de sua gente, pela sua cultura e pelo seu vasto patrimônio natural.
O governantes que elegeremos este mês na União e nos Estados estarão nos cargos durante o Bicentenário da Independência em 2022.
É com a história que se constrói o futuro. Éramos um império escravagista que acabara de destacar-se da metrópole portuguesa. Passamos por maus momentos nesses dois séculos. Agora somos uma República que precisa libertar-se de seu obscuro passado de violência e de corrupção. Esses são outros tipos de grilhões que nos atrasam o progresso e dos quais devemos nos livrar juntos, para que os 200 milhões de brasileiros possamos celebrar os 30 anos do Estado de Direito, os 200 anos do Brasil e esperar pelas próximas datas magnas. Só a democracia e a Constituição podem nos levar até lá.