Adolescente

Toma que o filho é teu: a quem compete julgar o crime do art. 239 do ECA?

Aqui vai mais um entre os tantos dilemas procedimentais que atravancam a marcha processual, na linha do toma-que-o-filho-é-teu:

por Vladimir Aras

Uma das grandes causas da impunidade é o pingue-pongue processual entre a Justiça Federal e a Justiça Estadual. A indefinição do juízo competente para o julgamento de determinados casos atrasa os processos e pode conduzir à prescrição da ação penal. Aqui vai mais um entre os tantos dilemas procedimentais que atravancam a marcha processual, na linha do “toma-que-o-filho-é-teu”:

Qual a Justiça competente para o julgamento do crime do art. 239 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90)?

Art. 239. Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro:

Pena – reclusão de quatro a seis anos, e multa.

Parágrafo único. Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude:

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.

Em se tratando de crianças ou adolescentes vítimas de crimes, a competência para o julgamento do caso poderá ser estadual ou federal a depender do crime, seguindo-se as regras do art. 109 da Constituição, que definem o papel do juiz federal.

Mas a pergunta persiste: o crime do art. 239 do ECA é de competência da Justiça Estadual ou da Justiça Federal?

Se o tráfico internacional de crianças ou adolescentes é para fins de exploração nos sentidos empregados pelo art. 3º, letra ‘a’, do Segundo Protocolo à Convenção de Palermo, a competência para processar e julgar o crime de tráfico de menores será federal.

Art. 3º. […]

a) A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos;

Exemplo: uma criança é enviada ilegalmente ao exterior para ser explorada. Nesta hipótese, aplicaríamos o art. 109, V, da CF, c/c o art. 5° do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, promulgado pelo Decreto 5.017/2004. Pode haver alguma zona de conflito entre do art. 239 do ECA com a figura do art. 231, §2º, inciso I, do CP, de redação mais recente, quando a meta optata for a exploração sexual da vítima menor, ou com o art. 206 do CP, quando o objetivo do autor for a exploração do trabalho de adolescente.

Se a remessa ou tentativa de remessa do menor ao exterior tiver por fim a adoção, o crime do art. 239 do ECA também será de competência da Justiça Federal, com base no art. 109, V, da CF combinado com o art. 35 da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989, promulgada pelo Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. São relevantes também os arts. 3º , 4º, 8º, 11 e 19 do mesmo tratado.

Artigo 35

Os Estados Partes tomarão todas as medidas de caráter nacional, bilateral e multilateral que sejam necessárias para impedir o seqüestro, a venda ou o tráfico de crianças para qualquer fim ou sob qualquer forma.

A 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, no HC 94.01.01227-0/BA, de relatoria do des. Tourinho Neto, afirmou a competência federal para o processamento de ação penal pelo delito do art. 239 do ECA. Obviamente, para a caracterização dessa infração penal, é necessário que o agente pratique ou tente praticar atos concretos destinados ao envio de criança ou adolescente para o exterior, a exemplo da obtenção do passaporte para a vítima, ou a compra de bilhete de viagem internacional.

Porém, há decisão do STJ em sentido aparentemente oposto. No CC 24821/BA, a 3ª Seção do Tribunal decidiu que:

PROCESSUAL PENAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. SEQÜESTRO. ART. 239 DO ECA. PROVA. Se, ao término da instrução, não há prova do tráfico internacional, a competência é da Justiça Comum Estadual. Conhecido o conflito, competente o Juízo Suscitado. (STJ, CC 24821/BA, j. em 14/04/1999, relator Min. Felix Fischer).

Neste caso ocorrido em Feira de Santana/BA, em 15 de novembro de 1993, a ré D.C.P. foi denunciada pelo Ministério Público do Estado da Bahia pelo crime do art. 159, §1º, c/c o art. 61, inciso I, do CP, isto é, sequestro extorsivo qualificado, com a agravante da reincidência, praticado contra o bebê D.C.S. A criança seria vendida a um alemão não identificado.

A ementa pode levar a interpretações incorretas, porque disse mais do que devia. O art. 109, inciso V, da CF, fixa a competência federal quando o resultado do crime ocorreu ou deveria ter ocorrido no exterior, cláusula que abarca tanto a tentativa propriamente dita quanto o exaurimento da conduta (o efetivo envio do menor para além das fronteiras nacionais). Se o objetivo do agente era a “emigração” da criança ou do adolescente, não se afasta a competência federal pelo só fato de a conduta ter sido apenas tentada. A competência será da Justiça da União, havendo consumação ou simples tentativa de envio de criança ou adolescente para o exterior.

Examinando o relatório e o voto condutor do CC 24821/BA, percebe-se que decisão do STJ foi coerente com este raciocínio, e diverso daquilo que foi ementado. É que no caso concreto em nenhum momento foi demonstrada a prática do crime do art. 239 do ECA. A denúncia versava sobre o crime de sequestro, em regra crime de competência da Justiça Estadual. Nas alegações finais, a Promotoria reclassificou a conduta no art. 239 do ECA, o que gerou o conflito entre os juízos estadual e federal. Não tendo ficado comprovada a existência de qualquer ato tendente a levar a criança para o exterior, o crime continuou sendo o do art. 159, §1º, do CP, de competência estadual.

Em outros termos, o problema do CC 24821/BA está na ementa. O resumo do julgado não reflete o que se passou no julgamento da causa. De fato, o STJ não decidiu que o crime do art. 239 do ECA pode nesse ou naquele caso ser de competência estadual. Decidiu, sim, que a conduta descrita pelo Ministério Público baiano era na verdade o crime do art. 159 do CP.

Importante lembrar ainda que, em geral, os crimes de migração clandestina de menores são praticados em concurso com falsos documentais. Para a saída do País quase sempre será necessária a solicitação, a emissão ou a utilização de um passaporte falso (art. 299 ou art. 304 do CP), o que firmará a competência federal e atrairá os demais delitos conexos, desta feita por força do art. 109, inciso IV, da Constituição, combinado com a Súmula 122 do STJ.

Portanto, se a vítima do tráfico internacional de pessoas, para fins de exploração (sexual, laboral, retirada de órgãos ou qualquer outro fim) ou para adoção internacional, for uma criança ou um adolescente, a competência para o julgamento será da Justiça Federal (art. 109, V, da Constituição).

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