Acorda Cidade
Por décadas, o simples ato de caminhar era largamente bloqueado pelos planejadores das cidades, mas não importa como você escolha circular ao redor delas, as chances de você ser um pedestre em algum momento durante o dia são grandes.
Recentemente, algumas cidades deram grandes passos: da ambição de programas de praças públicas em Nova York, nos Estados Unidos, e Paris, na França, à "pedestrização" de avenidas maiores, projeto realizado no caso da avenida Stroget, em Copenhague, na Dinamarca, e proposto para a Oxford Street, em Londres, no Reino Unido, e para a Gran Vía, em Madrid, na Espanha.
O urbanista estadunidense Jeff Speck, autor do livro Walkable City: How downtown can save America, one step at a time ("Cidade caminhável: como o centro pode salvar a América, um passo por vez", em tradução livre) e autor de uma das palestras mais vistas do TED Talks no Youtube, chamada de General Theory of Walkability ("Teoria geral da caminhada", em tradução livre) constata que andar deveria satisfazer quatro condições principais: a utilidade, a segurança, o conforto e o interesse.
Ele argumenta que o "tecido" da cidade – a variedade de prédios, espaços abertos e fachadas – é a chave. Cidades estadunidenses, australianas e canadenses, que foram construídas para carros, têm agora o desafio de refazer a infraestrutura para pedestres. Já as cidades antigas européias, que foram feitas com os pedestres em mente, têm bons "tecidos". Isso pode torná-la mais acessível à pessoas a pé mesmo se não tiverem pavimentos, cruzamentos ou outros mobiliários urbanos para pedestres. "É o caso de Roma, por exemplo", disse Speck ao jornal britânico The Guardian.
"Roma, num primeiro momento, parece terrível para pedestres. Metade das ruas não têm calçadas, muitos cruzamentos de carros não têm passagens para pessoas, os pavimentos são ruins e as rampas estão desativadas", conta. Mas apesar de tudo isso, assim como suas ladeiras e seu trânsito famoso por ser agressivo, esse "obstáculo anárquico é de alguma forma magnético para caminhantes". Por quê? Porque o "tecido" de Roma é ótimo.
O índice Walk Score, que permite a possíveis compradores ou inquilinos escolherem casas baseadas na acessibilidade a pé, lista atualmente apenas cidades nos Estados Unidos, no Canadá e na Austrália. Nova York liderou a lista de 2017 com uma pontuação de 89 de 100, com os bairros de Little Italy e Union Square sendo os principais pontuadores. San Francisco ficou na segunda colocação, seguida por Boston. No Canadá, Vancouver, Toronto e Montreal ficaram nas primeiras posições, enquanto na Austrália as cidades mais pontuadas foram Sydney, Melbourne e Adelaide.
A fama de Nova York começou com seu programa de transformação urbana em 2007, cujo projeto principal foi a pedestrianização de parte da Times Square, em 2015. A ex-secretária de transportes da cidade, Janette Sadik, disse ao The Guardian que a ideia era dar mais espaço às pessoas. "Nós mudamos a cidade de lugares em que as pessoas queriam estacionar seus carros para lugares em que as pessoas queriam estar, espaço de rua para sentar. Hoje, as pessoas escolhem sentar na rua ao invés de estacionar".
Assim como muitos analistas da área de transportes, Sadik acredita que a acessibilidade aos pedestres é mais que segurança – é também uma mudança em direção à competitividade econômica. De acordo com as Nações Unidas, cidades bem planejadas devem ter de 30% a 35% de seu espaço dedicado a ruas que favoreçam a conectividade. Manhattan possui 36%.
Nova York, porém, está longe da perfeição, ficando na terceira pior colocação em uma análise de congestionamentos feita pela consultoria Inrix em 1.064 cidades em 38 países. Na cidade estadunidense, os cidadãos gastam uma média de 89,4 horas por ano parados no trânsito. Mas o que foi conquistado na cidade – primeiro nos projetos construídos rapidamente e com materiais baratos, como bancos, pinturas e plantas – abriu os olhos das pessoas para o que era possível.
Janette Sadik trabalha agora com prefeitos de várias cidades ao redor do mundo por meio da NACTO (National Association of City Transportation Officials), que recentemente publicou um manual de urbanismo tático para ajudar planejadores a partir de sua experiência em Nova York. A NACTO e Sadik trabalharam no programa de peatonais em Paris claramente inspirados no exemplo da metrópole estadunidense.
Até 2020, sete praças da cidade francesa vão ser redesenhadas, dando 50% mais espaço para quem estiver de bicicleta ou a pé. A Place de la République, que havia se tornado uma rotatória, voltou a ser uma praça em 2013. "Os oponentes disseram que seria um caos, mas não foi o caso", disse a comissária para transportes da cidade ao jornal francês Liberation, Christophe Najdovski. "Agora é um lugar onde as pessoas podem descansar, onde famílias com crianças e pessoas mais velhas podem caminhar", completou.
No projeto batizado de Paris-Plages, uma ex-estrada às margens do Rio Sena e do canal La Villette se torna um resort à beira-mar" a cada verão. Desde que a administração proibiu a circulação de veículos de partes da região de Right Bank, em 2002, o festival da estação ali organizado se expande anualmente, e agora chega a diversos pedaços da beira do rio. O festival aumentou até o volume de passagens aéreas na semana em que acontece.
"Paris foi feita para caminhar, mas os carros tomaram os espaços", disse Najdovski. "Você pode andar de um final de Paris ao outro em menos que duas horas, mas historicamente a cidade teve que se adaptar aos veículos. O resultado: poluição e congestionamento. Agora, caminhar voltou a ser a principal política", completou.
Cidades ao redor do mundo estão pulando etapas: Madrid, na Espanha, introduziu fontes de água para ajudar os pedestres durante os dias mais quentes. Medellín, na Colômbia, construiu teleféricos para ligar bairros pobres aos centros de emprego, criando parques de bibliotecas e aumentando seus pavimentos para encorajar caminhadas. Melbourne, na Austrália, transformou desagradáveis caminhos usados inicialmente para despejar lixo em agora famosos "laneways", onde estão instalados restaurantes e cafés.
E os exemplos não param: Guangzhou, na China, está entre as cidades mais acessíveis para os pedestres do mundo. A reconstrução de bancos nas margens do rio Pearl criou um corredor ecológico que conecta seis caminhos, resultando em 100 metros de trilhas verdes, ligando atrações turísticas com espaços esportivos que servem cerca de sete milhões de pessoas.
Em maio do ano passado, Seul, na Coreia do Sul, abriu sua própria versão da nova-yorkina High Line – um corredor para pedestres acima do nível das ruas. A Seoullo 7017 é a última etapa em uma grande transformação da capital sul-coreana em direção aos pedestres. Uma década atrás, a via de trânsito rápido chamada de Cheonggyecheon, além de outras quatro vias elevadas, foram destruídas, dando espaço para o sujo riacho que existia embaixo delas. Hoje, o rio está limpo e possui bancos para caminhantes às suas margens.
Londres está se movendo na mesma direção com a proposta da transformação da Oxford Street, onde pedestres foram amontoados em pavimentos estreitos entre filas de ônibus por décadas. Neste ano, a rua vai se tornar o que os seus apoiadores chamam de "world-class pedestrian space" ("Espaço para pedestres de primeira classe", em tradução livre). A ideia é redirecionar os ônibus que passam pela rua, assim como os táxis, como parte de um projeto para acabar com o trânsito e encorajar caminhantes e ciclistas na área.
Assim como as cidades onde os esforços conscientes têm melhorado as condições para pessoas a pé, algumas são acessíveis aos pedestres por causa dos seus centros históricos. São os casos de Florença, na Itália, Vientiane, em Laos, Kyoto, no Japão, e Fez, no Marrocos.
Essa última, aliás, é um grande exemplo para as cidades modernas: fundada no século IX, é considerada hoje a maior zona livre de carros do mundo, e suas ruas medievais são tão estreitas que o lixo ainda é coletado por macacos. A beleza da cidade, em termos de caminhada, é sua densidade: 156 mil residentes vivem em uma área de 3,5 mil km². O resultado é que todas as viagens são feitas a pé – e as crianças podem jogar bola na calçada.
Então, onde fica a cidade mais acessível para se caminhar? O índice Walk Score afirma ser Nova York, nos EUA, Vancouver, no Canadá, e Sydney, na Austrália. Mas e Paris? E Fez? Enquanto parece ser impossível dar uma resposta definitiva, parece que tirar os carros das regiões é a chave para encorajar caminhadas.
Enrique Peñalosa, prefeito de Bogotá, capital da Colômbia, que foi o pioneiro em fechar ruas para carros uma vez por semana, concorda. "Deus nos fez como animais andantes – pedestres. Como um peixe precisa nadar, um pássaro precisa voar, nós precisamos andar. Não para sobreviver, mas para sermos felizes", finaliza.