Para o ministro Dias Toffoli, o mais novo entre os juízes do STF, em certas situações, o réu tem“direito de fugir”. Este reconhecimento consta de decisão da 1ª Turma, em 17/ago/2010, por ocasião do julgamento do HC 101.981/SP. O ministro Lewandowski ficou vencido.
O réu C.R.S. fora preso em 24/abr/2008. A 5ª Turma do STJ manteve a prisão, por considerá-la legítima (HC 136.090/SP, relator Jorge Mussi). No STF, alegou-se excesso de prazo, o que foi reconhecido pelo colegiado, embora o réu, com sua fuga, evidentemente tenha atrasado o andamento do processo. Mas o min. Toffoli foi além: Veja:
HC N. 101.981-SP
RELATOR: MIN. DIAS TOFFOLI
EMENTA: Habeas corpus. Constitucional. Processual penal. Excesso de prazo. Superveniência de sentença de pronúncia. Prisão mantida por novo fundamento. Novo título prisional. Habeas corpus prejudicado. Decreto fundado na gravidade abstrata do delito e na consequente periculosidade presumida do réu. Inadmissibilidade. Fuga posterior do réu do distrito da culpa. Fato irrelevante. Precedentes. Constrangimento ilegal caracterizado. HC concedido de ofício.
1. A superveniência de sentença de pronúncia com novo fundamento para a manutenção da prisão cautelar constitui novo título prisional, portanto, diverso da prisão preventiva. Prejuízo da presente impetração.
2. É ilegal o decreto de prisão preventiva que se funda na gravidade abstrata do delito e na consequente periculosidade presumida do réu. Ademais, em situações excepcionalíssimas, é legitima a fuga do réu para impedir prisão preventiva que considere ilegal.
3. Habeas corpus prejudicado. Ordem concedida de ofício.
Isto é que é ampla defesa! Para o ministro Toffoli, agora é o réu quem julga as razões do juiz. A mensagem é: se o acusado achar que o juiz mandou prendê-lo ilegalmente, pode fugir. E, para esta avaliação jurídica, o réu nem precisa cursar Direito ou fazer exame de Ordem. Vale o achismo “desinteressado” do próprio réu.
A decisão cita um precedente famoso, que foi relatado pelo ministro Marco Aurélio em 2005:
PRISÃO PREVENTIVA – EXCESSO DE PRAZO – FUGA DO ACUSADO. O simples fato de o acusado ter deixado o distrito da culpa, fugindo, não é de molde a respaldar o afastamento do direito ao relaxamento da prisão preventiva por excesso de prazo. A fuga é um direito natural dos que se sentem, por isto ou por aquilo, alvo de um ato discrepante da ordem jurídica, pouco importando a improcedência dessa visão, longe ficando de afastar o instituto do excesso de prazo” (RHC n. 84.851/BA, 1ª Turma, rel. min. Marco Aurélio, j. 20/5/2005).
Neste RHC 84.851/BA, o crime era um latrocínio, ocorrido na cidade de Itaberaba/BA. A vítima deixou viúva e três filhos. O réu L.P.S. ficara foragido de jul/99 ao mês de jan/2003. Ao ser preso, L. P. S. confessou o crime em juízo. Mesmo assim levou a melhor.
Com todo o respeito ao STF, isto pode ser chamado de hipergarantismo, ou garantismo à brasileira. Se a fuga é um “direito natural”, qualquer ordem de prisão é ilegal e qualquer condenação à prisão é ilegítima. A prevalecer esse raciocínio, todos os presos têm de ser soltos. Cabe ao Estado garantir-lhes o direito de liberdade imediatamente.
Vontade de fugir é uma coisa; direito de fugir é outra! Quem está preso quer sair. Mas se a lei admite a custódia preventiva quando presente a necessidade de garantir a aplicação da lei penal (art. 312, CPP), é porque não há direito algum de evasão.
Embora existam muitas prisões desnecessárias e abusivas e vários estabelecimentos prisionais ”funcionem” em condições terríveis (este é outro assunto), pergunto: qual réu na face da Terra admitirá que sua prisão foi justamente decretada? E qual não invocaria esse sacrossanto “direito” de fuga. Será que cabe HC para garanti-lo?
Lembro um caso em que um habeas corpus foi imediatamente sucedido por uma fuga. Em 14/jul/2000, o ministro Marco Aurélio concedeu liminar no HC 80.288/RJ a Salvatore Cacciola, banqueiro acusado de crimes contra o SFN. Dias depois, conforme temiam o Ministério Público e os tribunais inferiores, Cacciola fugiu para a Itália, de onde é nacional. De lá não pôde ser extraditado, por falta de reciprocidade. Só retornou ao Brasil em 2008 quando foi preso em Mônaco e entregue ao nosso País.
Voltando ao tema… No caso relatado por Dias Toffoli em ago/2010 (HC 101.981/SP) tratava-se de cidadão acusado de homicídio duplamente qualificado (art. 121, §2º, I e IV, CP). O crime ocorreu em Sorocaba em jul/2006 e o imputado fugiu para não ser preso, o que gerou a suspensão do processo e o “excesso de prazo”. Ainda assim, a 1ª Turma do STF deu-lhe razão.
Viva o réu, pois a vítima está morta! Seus familiares poderiam argumentar, parafraseando o ministro Marco Aurélio: a vingança também “é um direito natural dos que se sentem, por isto ou por aquilo, alvo de um ato discrepante da ordem jurídica”…
Diante do homicídio, o mais grave de todos os atos “discrepantes da ordem jurídica”, valeria a regra de talião: “olho por olho, dente por dente”? É para evitar a barbárie e a vendetta que o direito penal e a Justiça criminal existem.
De um lado: por que há tantos réus presos sem necessidade? Do outro: porque há tanta ânsia por Justiça na sociedade, a ponto de em algumas localidade prevalecer não a Lei de Gerson, mas a Lei de Lynch, com linchamentos sumários de autores de crimes violentos? Há que se achar um jeito de harmonizar os direitos processuais do réu e os direitos da sociedade à segurança e à integridade de outros tantos direitos inscritos, para todos, no art. 5º da Constituição. Como está não há como continuar: é o Brasil que está atrás das grades, ao passo que criminosos violentos estão soltos e à espreita de novas vítimas.
Enquanto este dia não vem, quem me consegue uma astronave? Pois quero “dar um rolé nas nuvens” ou exercer o meu direito de fugir para o mundo da Lua.