por Vladimir Aras
A boneca de pano Emília é muito desaforada. “Esperta e atrevida”, diria Baby Consuelo, que compôs uma divertida canção infantil em sua homenagem. Mas, quem estudou a fundo a literatura de Monteiro Lobato (1882-1948) crê que Emília foi utilizada mais de uma vez para vocalizar o racismo de Lobato. É o caso de Marisa Lajolo. Em certo trecho do livro “Histórias de Tia Nastácia” (1937), vem este revelador diálogo, por ela pinçado:
“Pois cá comigo – disse Emília- só aturo estas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e até bárbaras – coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto, e não gosto !”.
Por esta e outras, há poucos dias (out/2010), o Conselho Nacional de Educação (CNE), classificou de racista o livro “Caçadas de Pedrinho” (1933), do mesmo autor, e, por meio do Parecer CNE/CEB 15/2010, pediu que o MEC o enquadre num index livrorum prohibitorum para os fins do Programa Nacional de Biblioteca na Escola (PNBE). A Academia Brasileira de Letras (ABL) foi contra a rotulação. Na verdade, o CNE pretende impedir a inclusão de tal obra no PNBE ou, alternativamente, contextualizá-la para que não induza crianças ao racismo. Nesta hipótese, este objetivo seria alcançado mediante a inserção de nota explicativa do editor sobre os estereótipos raciais na literatura.
Muda o século, muda o meio, mas a mensagem discriminatória é a mesma. Do século XX para o XXI; dos livros para a Internet; de Lobato para Mayara Petruso. Quem? Mayara, vocês sabem, aquela estudante de Direito nascida em Bragança Paulista que disse no Twitter que “Nordestisto não é gente” (sic) e incitou: “Faça um favor a SP: mate um nordestino afogado!“
Não satisfeita com sua “produção literária” no microblog, a Srta. Petruso publicou seus pensamentos também no Facebook: “Afunda Brasil. Dêem direito de voto pros nordestinos e afundem o país de quem trabalha pra sustentar os vagabundos que fazem filhos pra ganhar o bolsa 171”. Somos todos uns estelionatários…
Essa jovem se referia à eleição de Dilma Roussef e aos programas sociais do governo federal. Os culpados pelas desgraças do Brasil seriam os nordestinos. Sem querer, Mayara Petruso tornou-se conhecida em todo o País. Sua tagarelice rendeu-lhe fama repentina, muitos tendo visto em suas falas explícitas manifestações de preconceito contra os brasileiros do Nordeste.
Aprendemos uma coisa com Mayara. Ao navegar na internet com a boca muito aberta, corre-se o risco de morrer afogado num oceano de críticas. Foi o que lhe sucedeu. A tuiteira @MayaraPetruso foi vítima de seu próprio desconhecimento. Uma mensagem na rede social Twitter tem um efeito multiplicador que muitos ignoram. Um pequeno grupo de seguidores (os “followers”) pode multiplicar uma despretensiosa mensagem (“tuíte” para os familiarizados) milhares de vezes, difundindo-a de tal modo a ponto de transformá-la num trend topic (TT), isto é, num dos assuntos mais comentados na rede. Ela conseguiu! Foi matéria até no jornal The Telegraph, de Londres. Veja aqui. Depois disso, a moça teve de deletar seu avatar, sumiu do Facebook e seu contrato de estágio foi rescindido.
É uma pena que uma candidata a bacharel, – e potencialmente uma futura advogada, promotora, juíza ou delegada -, aparentemente tenha incorrido na legislação penal. Não a julgo. Todos são inocentes… Isto tudo vai ser apurado. Mas, teoricamente falando, quem age assim pode praticar o crime de discriminação previsto no art. 20, §2º, da Lei 7.716/89, uma das formas de racismo. Este crime é inafiançável e imprescritível, segundo o art. 5º, inciso XLII, da Constituição de 1988.
Conforme a lei de 1989, quem pratica discriminação de raça, cor, etnia, religião ou “procedência nacional” comete crime e sofre pena de 1 a 3 anos de reclusão, e multa. A sanção penal pode chegar a 5 anos de reclusão e multa, se a infração for cometida “por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza”.
Primeiro problema. O preconceito manifestado pela estudante atingiu os nordestinos de maneira geral. A ofensa não teve em mira uma raça, etnia, cor ou religião em particular. Quando o legislador referiu-se a “procedência nacional” pretendeu apenas reprimir a xenofobia em sentido estrito, ou seja, o preconceito contra estrangeiros (cidadãos de outras nações), ou também incluiu entre as possíveis vítimas os brasileiros de outras regiões da nossa própria nação? Se a resposta for restritiva, a conduta da estudante será atípica, não constituindo crime.
Segundo problema. A conduta poderia ser enquadrada no art. 140, §3º, do CP, que prevê a chamada injúria racial ou por preconceito? Não. O agir da universitária só poderia ser amoldado a esta norma, se o seu alvo fosse uma pessoa determinada. “Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: Pena – reclusão de 1 a 3 anos, e multa”, com a causa de aumento de um terço, prevista no art. 141, inciso III, do CP.
Contudo, este dispositivo não é aplicável neste caso. Em out/2006, ao julgar o RHC 19.166/RJ, a 5ª Turma do STJ decidiu que “O crime do art. 20, da Lei nº 7.716/89, na modalidade de praticar ou incitar a discriminação ou preconceito de procedência nacional, não se confunde com o crime de injúria preconceituosa (art. 140, §3º, do CP). Este tutela a honra subjetiva da pessoa. Aquele, por sua vez, é um sentimento em relação a toda uma coletividade em razão de sua origem (nacionalidade)”.
Terceiro problema. O Twitter e o Facebook podem ser considerados “meios de comunicação social”? Ou podem ser tidos como “publicações de qualquer natureza”. Aparentemente a resposta é afirmativa e tem relevância para verificar a maior ou menor gravidade da conduta. Tanto pior será o crime quanto maior for sua “audiência”.
Quarto problema. A quem cabe julgar o suposto delito? Segundo o STJ, no caso de racismo pela Internet, a competência é da Justiça Federal, cabendo ao juízo do local de onde foram enviadas as manifestações racistas julgar a causa (STJ, 3ª Seção, CC 102.454/RJ, rel. ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, julgado em 25/03/2009). A ser assim, o MPF em São Paulo deverá cuidar do caso. Contudo, há controvérsias. Qual o interesse federal atingido (art. 109, CF)? É de se esperar um pingue-pongue processual, entre a Justiça Federal e a Estadual. Entretanto, basta aplicar o art. IV da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1965), promulgada pelo Decreto 65.810, de 8 de dezembro de 1969, em conjunto com o art. 109, inciso V, da Constituição de 1988 para firmar a competência federal.
Semelhanças e coincidências
Não conheço outras ideias de Mayara Petruso, mas todo mundo sabe que o genial Monteiro Lobato, o criador de Emília, tinha pretensões eugênicas; queria tornar o Brasil uma nação racialmente pura, pelo seu branqueamento progressivo. Em um trecho do seu romance de ficção científica, “O Choque das raças ou o presidente negro” (1926), um exercício de futurologia sobre o primeiro afroamericano a ser eleito presidente dos Estados Unidos no longínquo ano de 2228, Lobato pontifica: “A nossa solução foi medíocre. Estragou as duas raças, fundindo-as. O negro perdeu as suas admiráveis qualidades físicas de selvagem e o branco sofreu a inevitável penhora de caráter”.
Numa carta ao médico paulista Renato Kehl (1889-1974), fundador do Comitê Central de Eugenismo e da Sociedade Eugênica de São Paulo, Lobato escreveu: “Renato. Tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque, grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo no frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo […] Precisamos lançar, vulgarizar essas idéias.A humanidade precisa de uma coisa só: poda. É como a vinha. Lobato”
Coincidentemente, o escritor paulista defendeu algo semelhante ao que essa sua conterrânea enunciou em menos de 140 caracteres. Segundo o antropólogo Edgar Smaniotto, também em “O presidente negro”, Lobato sonha que no futuro as regiões Sul e Sudeste se uniriam ao Uruguai e à Argentina para formar a “grande República Branca do Paraná”, enquanto as regiões Norte e Nordeste seriam entregues aos índios, aos negros e aos mestiços.
Será que Mayara Petruso leu Lobato? “Reinações de Narizinho” ou “Memórias da Emília”, um desses aí. Sei não! Vai ver o Conselho Nacional de Educação tem razão. Daqui a pouco alguém vai querer colocar “O presidente negro” na lista negra. E nada disso é politicamente correto.