por Vladimir Aras
A Operação Castelo de Areia está dando o que falar. A ministra Eliana Calmon, do STJ, atual Corregedora Nacional de Justiça, mandou um duro recado com endereço certo. Entrevistada pela Veja, de 29 de setembro de 2010 (“A Corte dos Padrinhos”), sobre o suposto apadrinhamento nos tribunais, a magistrada baiana fez uma acusação alarmante e corajosa:
[Veja] Esse problema atinge também os tribunais superiores, onde as nomeações são feitas pelo presidente da República?
[EC] Estamos falando de outra questão muito séria. É como o braço político se infiltra no Poder Judiciário. Recentemente, para atender a um pedido político, o STJ chegou à conclusão de que denúncia anônima não pode ser considerada pelo tribunal.
[Veja] A tese que a senhora critica foi usada pelo ministro César Asfor Rocha para trancar a Operação Castelo de Areia, que investigou pagamentos da empreiteira Camargo Corrêa a vários políticos.
[EC] É uma tese equivocada, que serve muito bem a interesses políticos. O STJ chegou à conclusão de que denúncia anônima não pode ser considerada pelo tribunal. De fato, uma simples carta apócrifa não deve ser considerada. Mas, se a Polícia Federal recebe a denúncia, investiga e vê que é verdadeira, e a investigação chega ao tribunal com todas as provas, você vai desconsiderar? Tem cabimento isso? Não tem. A denúncia anônima só vale quando o denunciado é um traficante? Há uma mistura e uma intimidade indecente com o poder.
Como já expliquei aqui, a Operação Castelo de Areia começou em São Paulo, mas tem reflexos na investigação de supostas ilegalidades cometidas em várias obras públicas Brasil a fora, inclusive na Bahia.
Aqui, como em outras cidades, a ação penal proposta pelo MPF contra diretores de empreiteiras por conta do escândalo Metrosal, o metrô de Salvador, está paralisada por causa da liminar concedida pelo ministro César Asfor Rocha no HC 159.159 que questiona a validade das provas colhidas pela Polícia Federal. A alegação da defesa é de que tudo começou com uma delação anônima, o que invalidaria as escutas telefônicas autorizadas pela Justiça. Esta decisão foi confirmada pela relatora do HC na 6ª Turma do STJ, min. Maria Thereza Assis Moura em meados de setembro. Após o seu voto, pediu vista o ministro Og Fernandes.
A ministra Eliana Calmon, do mesmo STJ, tocou num ponto fundamental para as atividades de inteligência policial e inteligência de segurança pública. As delações anônimas servem para a abertura de investigações criminais?
A relatora do HC 159.159 na 6ª Turma do STJ diz que não.
Mas o STF diz que sim, servem! Basta ver o que decidiu aquela Corte no HC 100042-MC/RO, relatado pelo ministro Celso de Mello:
HC 100042-MC/RO*
RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO
EMENTA: A INVESTIGAÇÃO PENAL E A QUESTÃO DA DELAÇÃO ANÔNIMA. DOUTRINA. PRECEDENTES. PRETENDIDA EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO, COM O CONSEQÜENTE ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL. DESCARACTERIZAÇÃO, NA ESPÉCIE, DA PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. MEDIDA CAUTELAR INDEFERIDA.
– As autoridades públicas não podem iniciar qualquer medida de persecução (penal ou disciplinar), apoiando-se, unicamente, para tal fim, em peças apócrifas ou em escritos anônimos. É por essa razão que o escrito anônimo não autoriza, desde que isoladamente considerado, a imediata instauração de “persecutio criminis”.
– Peças apócrifas não podem ser formalmente incorporadas a procedimentos instaurados pelo Estado, salvo quando forem produzidas pelo acusado ou, ainda, quando constituírem, elas próprias, o corpo de delito (como sucede com bilhetes de resgate no crime de extorsão mediante seqüestro, ou como ocorre com cartas que evidenciem a prática de crimes contra a honra, ou que corporifiquem o delito de ameaça ou que materializem o “crimen falsi”, p. ex.).
– Nada impede, contudo, que o Poder Público, provocado por delação anônima (“disque-denúncia”, p. ex.), adote medidas informais destinadas a apurar, previamente, em averiguação sumária, “com prudência e discrição”, a possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, desde que o faça com o objetivo de conferir a verossimilhança dos fatos nela denunciados, em ordem a promover, então, em caso positivo, a formal instauração da “persecutio criminis”, mantendo-se, assim, completa desvinculação desse procedimento estatal em relação às peças apócrifas.
Outra decisão no mesmo sentido foi tomada pela 1ª Turma do STF em 23/mar/2010, no HC 95.244/PE, relatado pelo ministro Dias Toffoli. O curioso é que no HC 53.703/RJ, julgado em 02/abr/2009, a min. Maria Thereza de Assis Moura considerou legítima investigação criminal baseada em delação anônima. O que os tribunais não admitem, e com razão, é a constrição de direitos fundamentais diretamente a partir de notícia-crime apócrifa, sem qualquer outra averiguação prévia.
Mais interessante ainda é perceber que a Operação Castelo de Areia não se baseou em delação anônima, mas sim em delação premiada, formalizada em processo apartado, no qual a identidade do colaborador fora preservada. É o que se depreende do HC 2009.03.00.027045-4/SP, julgado pelo TRF da 3ª Região (SP e MS) em 3/dez/2009, tendo a des. Cecília Mello como relatora.
Em suma: seja como for, se o caso for parar no STF, a tendência é que o julgado ainda provisório do STJ seja derrubado. Se isto acontecer, a ação penal do metrô de Salvador poderá voltar a andar. De acordo com o princípio da obrigatoriedade, as autoridades estatais têm o dever de apurar as suspeitas de crime que cheguem ao seu conhecimento. A delação anônima, quando devidamente confirmada em investigação preliminar da Polícia, é um instrumento legítimo de inteligência policial e medida útil para a preservação da segurança pública. E se esse tipo de notícia-crime serve para pegar traficantes e pedófilos nos serviços de disque-denúncia, deve servir também para pegar outros tipos de suspeitos, inclusive os de alvos colarinhos.