por Vladimir Aras
Em 3/ago/2010, o colega Eduardo El Hage, do MPF em Ilhéus, conseguiu um importante precedente para ajudar a firmar o modelo acusatório de processo penal.
Diante da prisão de Rosivaldo Pereira da Silva, o “Babau”, líder dos tubinambás da Serra do Padeiro, na região de Una e Buerarema, o MPF impetrou um habeas corpus contra a decisão da juíza federal substituta de Ilhéus que autorizou sua captura e de outros indígenas.
A magistrada decretou a prisão preventiva atendendo exclusivamente representação da Polícia Federal, à qual se contrapôs o Ministério Público Federal, como dominus litis. O MPF não via necessidade da prisão cautelar, por antever a possibilidade de arquivamento, por atipicidade, do inquérito policial que a originou.
A impetração visou à libertação de todos os pacientes presos a mando daquele Juízo Federal no caso Babau, pois a decretação baseou-se apenas em representação formulada por quem não detém legitimidade ativa ou capacidade postulatória.
O HC (cuja petição pode ser lida aqui) foi relatado pelo desembargador Carlos Olavo, e 3ª Turma do TRF da 1ª Região decidiu que:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. QUESTIONAMENTO SOBRE A ILEGALIDADE DO DECRETO DE PRISÃO CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONSTATADO. AUSÊNCIA DE NOTÍCIA SOBRE FORMULAÇÃO DE DENÚNCIA.
1. Não vislumbrando o Ministério Público prática de delito que justifique instauração de ação penal, afastam-se os pressupostos do art. 312 do CPP para a decretação de prisão preventiva.
2. Habeas Corpus concedido.
A C Ó R D Ã O
Decide a Turma, à unanimidade, conceder a ordem de habeas Corpus, nos termos do voto do Relator.
Terceira Turma do TRF da 1ª Região, 3 de agosto de 2010.
Ou seja, se o Ministério Público não vai acusar, o juiz não pode prender. A tese manejada pelo MPF e acolhida pelo TRF-1 não é nova. Vários membros do Ministério Público vêm sustentando a falta de capacidade postulatória da Polícia no processo penal adversarial. Porém, esta decisão parece constituir um leading case de grande importância, que deve ser aprofundado em outros habeas corpus.
Em suma: em nome do princípio acusatório e do princípio da inércia, na fase investigatória, isto é, antes de formalizada a denúncia pelo Ministério Público, não deve o juiz deferir representações policiais para decretação de prisão de suspeitos ou para interferência em outros direitos fundamentais, contrariamente ao pronunciamento do órgão de acusação. Se o “promotor natural” decidiu que não denunciará o investigado (art. 129, inciso I) ou se entende desnecessária para a ação penal sua prisão ou uma busca e apressão ou ainda uma interceptação de comunicações, há que se rejeitar a pretensão policial. Para tramitar, a representação policial deve ser acolhida pelo MP, que é o órgão encarregado da persecução criminal em juízo, e só por ele encaminhada a decisão judicial.
É preciso respeitar o processo penal de partes, especialmente em matéria de liberdades individuais, e o princípio nemo iudex sine actore (“não há juiz sem autor”). A Polícia não pode provocar diretamente o Judiciário, pois essa faculdade de “representar” é um mero resquício do sistema inquisitório, que desequilibra o devido processo penal em prejuízo da defesa, e coloca o advogado ou defensor na situação pouco vantajosa de ter de se contrapor a pedidos da parte, o Ministério Público, e a requerimentos da Polícia, que não é parte.
O Judiciário é o filtro final, o anteparo último do cidadão contra todas as ameaças ao jus libertatis e às demais garantias constitucionais. Não pode associar-se à Polícia para atuar como juiz-investigador, figura rechaçada pelo STF na ADI 1517. Mas o Ministério Público também é um filtro e um escudo, o primeiro, contra essas mesmas investidas persecutórias frágeis ou duvidosas, máxime quando partem da Polícia Judiciária, em situações que exigem sua atuação como fiscal da lei (art. 127, CF), ombudsman (art. 129, II, CF) e órgão de controle externo da atividade policial (art. 129, VII, CF).
Por isto, graças à Procuradoria da República em Ilhéus, ao TRF-1 e à evolução acusatória (art. 129, I, CF) do nosso processo penal, o cacique Babau foi solto, e esse modelo inquisitivo do século XIX aos poucos vai pro beleléu.